Ronaldo Lemos é advogado, especialista em tecnologia e cientista-chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Para ele, quando o assunto é Inteligência Artificial (IA) e Inteligência Artificial generativa (GenAI), a colaboração e as parcerias são essenciais para o sucesso e a inovação nesse campo.
Em entrevista à Consumidor Moderno, ele explica que a criação de uma comunidade unida e colaborativa não apenas permite um avanço mais rápido no campo da GenAI, mas também garante que as inovações resultantes sejam implementadas de forma responsável e com enfoque nas necessidades da sociedade. “O futuro da IA estará intimamente ligado à capacidade dos profissionais e das organizações de trabalharem juntos. E essa união deve se dar em prol de um objetivo comum: a melhoria da vida humana através de tecnologias inteligentes e acessíveis”, explica o especialista.
Confira, na íntegra, a entrevista.
Consumidor Moderno: Os países que fomentarem o desenvolvimento interno de tecnologias serão os protagonistas da IA nos próximos anos?
Ronaldo Lemos: Não considero que essa seja a realidade. Os países que se destacarão como protagonistas são aqueles que conseguirem estabelecer amplas redes de cooperação para o desenvolvimento tecnológico. Isso se dará tanto em nível interno quanto internacional. Atualmente, nenhum país é autossuficiente para desenvolver tecnologias em grande escala de forma isolada. É necessário obter insumos para todas as etapas do desenvolvimento. Esses insumos vão desde minerais raros utilizados em circuitos ou baterias, até dados que se originam de diversas línguas e nações, além de capital humano. A dinâmica do desenvolvimento tecnológico reside em quem consegue participar de maneira mais eficiente dessas redes.
Brasil, sem direção na GenAI
CM: Onde se posiciona o Brasil nessa corrida?
Isolado e sem direção. No passado, o Brasil conseguiu integrar-se de maneira mais eficaz nas redes de desenvolvimento tecnológico. Entre 2003 e 2010, o país destacou-se globalmente em modelos de software livre (open source). Anualmente, Porto Alegre sediava o Fórum Internacional do Software Livre, atraindo as principais empresas do setor e muitos dos programadores mais renomados do mundo.
O Brasil incorporou o modelo open source como parte de sua política pública, implementando programas de compartilhamento de software na administração pública (inclusive publiquei um livro sobre o assunto, intitulado Direito do Software Livre e a Administração Pública). Entretanto, o País perdeu essa liderança. Passamos a adotar um modelo “europeizado”, abandonando a ambição de desenvolver tecnologia e expandir nossas redes de inovação para apenas criticá-las. Nos tornamos reféns de legislações europeias, abandonando as nossas próprias visões eficazes.
GenAI e Regulação
CM: O Brasil investe e apoia as empresas no que tange à GenAI e outras tecnologias? Ou está mais preocupado em regular a tecnologia do que em realmente beneficiar a sociedade com seu potencial?
Atualmente, o País está direcionando sua energia para regular a tecnologia, e isso não é uma regulação original que atenda aos interesses brasileiros, mas uma mera tentativa de replicar leis europeias. Curiosamente, a própria Europa já está revisando seu modelo, percebendo que ele não funcionou e deixou o continente em desvantagem.
O Brasil tem a oportunidade de se especializar novamente em open source relacionado à IA, criando uma legislação focada em proteger e fomentar modelos abertos, posicionando o País como um polo de desenvolvimento de IA. Isso resgata nosso passado e nos protege da maior ameaça: o risco de ficarmos completamente excluídos da disputa em GenAI.
Riscos da regulação
CM: Existe o risco de o Brasil estar empreendendo esforços excessivos para regular a tecnologia, que está em constante mudança, e que essa regulação possa se tornar obsoleta?
Sim, o maior risco que enfrentamos é ficarmos completamente fora da competição em GenAI. É preocupante que nenhum país do mundo venha a precisar de nós nesse setor. Existem várias maneiras pelas quais o Brasil pode agregar valor e participar do desenvolvimento da IA, e uma delas é através da energia, principalmente a energia renovável. Recentemente, o mundo ficou atônito com a valorização da NVIDIA, que produz chips usados por empresas de IA, com um aumento em seu valor de mercado de US$ 2,7 trilhões em 18 meses, superando o PIB do Brasil.
Isto se deve ao fato de que a Inteligência Artificial depende de dois pilares: chips e eletricidade. Não existe IA sem chips, e chips sem eletricidade são ineficazes. Em 2023, a NVIDIA enviou 100 mil unidades de chips, consumindo 7,3 TWh de eletricidade, e a expectativa é por um crescimento exponencial até 2026, com um aumento de pelo menos dez vezes na demanda por eletricidade apenas para suportar esses chips. Em 2023, 93,1% da energia gerada no Brasil veio de fontes renováveis (dados da CCEE). Temos 203 GW de potência instalada e 85 GW em projetos futuros, todos eles renováveis (dados da Aneel). Podemos atrair data centers ao Brasil, oferecendo essa energia localmente (powershoring), ou até mesmo exportá-la para outros continentes. Uma estratégia chave seria acelerar o Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2), que utiliza a energia renovável para produzir hidrogênio destinado à exportação.
Mas esse é apenas um dos caminhos. Existem muitas outras possibilidades, mas não vejo o País atuando em nenhuma delas, apenas focando em uma regulação inspirada na Europa.
Agro versus GenAI
CM: O Brasil, com uma economia que depende da produção agrícola, está fazendo algo errado ao observar que as maiores empresas do mundo estão no setor tecnológico?
O futuro do agronegócio não pertence apenas a quem possui os melhores recursos naturais, mas a quem aplica ciência e tecnologia de maneira mais eficaz. A competição gira em torno de sementes, cultivares, know-how e insumos. O Brasil reconhece isso, visto que sua agricultura é competitiva em nível global, especialmente graças à Embrapa. Entretanto, liderar é um desafio constante e instável.
Outros países estão percebendo que, através da ciência e da tecnologia, podem aumentar sua competitividade no agronegócio, avançando em áreas que hoje são dominadas pelo Brasil. Um exemplo é o Vietnã, que, em duas décadas, passou de um competidor inexpressivo a uma referência no mercado de café. O Brasil participa pouco da competição por propriedade intelectual e patentes no setor agrícola, assim como do desenvolvimento de cultivares. Em relação a esse aspecto, outros países estão em uma posição forte. A Syngenta, uma gigante chinesa, possui inúmeras patentes e cultivares em áreas como milho, soja e alface, além de muitos produtos químicos. Inclusive, a empresa chegou a patentear uma variedade de tomate típica da América do Sul, mas a patente foi revogada após protestos.
Os produtores brasileiros dependem da Syngenta para vários produtos essenciais, mas, mesmo sendo uma potência agrícola, o Brasil domina apenas uma fração do setor. Precisamos competir em propriedade intelectual, patentes, cultivares, insumos e implementos. O futuro deste setor depende disso.
Déficit de profissionais
CM: O déficit de profissionais especializados em tecnologia e a migração de talentos para o exterior são motivos de preocupação?
Sim, isso é uma preocupação. Os dados mostram que o número de calouros em cursos de engenharia caiu substancialmente – de 469 mil em 2014 para 358 mil em 2023, uma redução de 23%. Essa tendência reflete a diminuição do interesse em formações que são fundamentais para o desenvolvimento tecnológico e inovação. Com menos profissionais se qualificando, o déficit de especialistas em tecnologia tende a aumentar, complicando a sustentabilidade de um ecossistema tecnológico robusto no País.
Além disso, quando o ambiente interno não proporciona oportunidades atraentes ou competitivas – seja pelos altos custos dos cursos ou pelas perspectivas de remuneração e condições de trabalho menos favoráveis –, os talentos tendem a migrar para o exterior, onde encontram melhores incentivos e oportunidades de crescimento profissional. Esse boom de profissionais atuando no exterior contribui para a “fuga de cérebros”, prejudicando o Brasil na retenção de conhecimento e na competitividade global.
Portanto, tanto o déficit de especialistas em tecnologia quanto a tendência de migração de talentos para o exterior podem comprometer o desenvolvimento econômico e a inovação tecnológica, reforçando a necessidade de políticas públicas e iniciativas que incentivem a formação e a permanência desses profissionais no Brasil.
Digitalização dos governos
CM: Como a digitalização e a eficiência nos governos das três esferas poderiam impactar o Brasil?
A experiência de países como a Estônia e a Índia demonstra como a integração da tecnologia em diversos setores pode transformar uma sociedade. Na Estônia, desde as escolas até o governo, a tecnologia é incorporada de maneira sistemática: os alunos aprendem programação e robótica desde cedo, preparando as futuras gerações para os desafios da era digital; os governos oferecem 99% dos serviços públicos online, garantindo agilidade, transparência e segurança; e iniciativas como o e-Residency têm atraído mais de 1,6 milhão de empresas internacionais, além de incentivar a criação de startups de renome mundial, como Transferwise e Bolt.
No Brasil, há um imenso potencial para a adoção de medidas semelhantes. Investir em educação digital, integrando programação e outras competências tecnológicas desde o ensino fundamental, pode preparar os jovens para uma economia cada vez mais digitalizada. Ademais, a digitalização dos serviços governamentais poderia reduzir drasticamente a burocracia e os custos operacionais, além de melhorar a transparência e a eficiência na administração pública. Finalmente, fomentar ambientes que favoreçam a inovação e o empreendedorismo – através de políticas públicas e estímulos financeiros – poderia posicionar o Brasil como um centro de startups e soluções tecnológicas inovadoras.
Crescimento econômico
CM: O Brasil tem então a oportunidade de transformar seu modelo de desenvolvimento?
Sim, resumidamente, ao unir esforços em educação, governança e apoio à inovação, o Brasil tem a oportunidade de transformar seu modelo de desenvolvimento, inspirando-se em exemplos como os da Estônia e da Índia para promover crescimento econômico e inclusão social. Uma lição que o Brasil pode extrair da Índia é que, em questões de tecnologia e Inteligência Artificial, a melhor defesa é o ataque. A economia brasileira foi, por décadas, maior que a indiana; em 2010, o PIB indiano era de US$ 1,73 trilhões, enquanto o brasileiro era de US$ 2,2 trilhões. Desde então, a Índia superou o Brasil. Atualmente, o PIB indiano alcança US$ 3,8 trilhões, mais que o dobro do que era na época da ultrapassagem.
A Índia reconheceu que o maior risco que um país enfrenta em relação à GenAI é ter sua oferta local de serviços dominada por empresas do Vale do Silício. Nesse cenário, não importa quão bem formulada seja a regulação ou quão reluzente seja a burocracia, o país estaria fora do jogo. Não há risco maior que esse.