Anitta é um caso a parte no entretenimento brasileiro e latino. A cantora ultrapassou barreiras de línguas, culturas e números nunca antes vistos por artistas brasileiros. Downtown, sua parceria com J Balvin, foi a primeira tentativa concreta de penetrar o mercado latino em geral. A canção foi certificada recentemente como diamante e em alguns países, como o Chile, liderou a parada musical.
“A galera admira muito as produções brasileiras de funk. Hoje o ritmo cresce muito e tem um respeito que não tinha. Me desdobrei em mil para fazer isso acontecer: fiz internacional, fiz aqui – Brasil – e perdi muito tempo investindo em viagens para entender a cultura e como essas pessoas fazem negócios”
A partir daí vemos uma grande empreitada de negócios da cantora, que se divide entre lançar projetos brasileiros para manter o público local – uma tendência cada vez maior que chamamos de “Lobal” -, e outros formatos para o público internacional com a mesma intenção.
5 características da tendência Lobal
1. É parte da tendência de interiorização. O local e interior ganha força além de narrativas internacionais √
2. Produzir, contratar e fazer acontecer localmente é muito mais barato e tornar isso parte do hype ajuda empresas e companhias √
3. As novas gerações buscam em tendências locais, elementos originais para formar suas identidades √
4. A América Latina é quase um berço para a tendência √
5. O tropicalismo é uma das referências: o movimento foi um dos primeiros no país a traduzir tendências e a criar versões com características de diversos lugares √
A teoria Anitta x personalização
Ao passar do tempo, com a intenção de difundir os ritmos nativos de suas raízes, Anitta aproveitou a disseminação de seu nome para fazer um gênero novo, que no fim, nada mais é do que uma miscelânea de elementos que formam um ritmo multicultural. O foco em estilos marginalizados, como funk e reggaeton, é estratégico: o consumidor busca novos ritmos, não só para as músicas que escuta. Ele quer personalização em tudo o que consome. E o entretenimento precisa entregar isso.
Aqui, um panorama se abre quando pensamos em entretenimento. Recentemente, uma estrela de internet, cantora e performista, transacionou de um eletropop para um híbrido entre pop industrial e metal. A artista norte-americana nomeada Poppy aumentou seu público e colocou sua face como a promessa do Nu-Metal. E o que queremos dizer aqui? O rock’n’roll enfrenta épocas difíceis pela falta de renovação e uma dificuldade de figurar nos charts. Quando se renova e se personaliza, o público passa a voltar seu interesse para tal.
Miscelânea de coisas
Quando voltamos à América Latina, temos exatamente este cenário. No Brasil, o sertanejo merge com o funk e vice-versa. A bossa nova redefine artistas de ritmos de rua com músicas não esperadas por seu público e a “miscelânea de coisas” aparece aí de novo.
Foi confiando nisso que Anitta transformou sua carreira neste negócio gigantesco. Hoje, ela transita pelos diversos formatos de mídia e trabalha a imagem de “tentáculos infinitos” para tudo com uma facilidade ímpar.
“Anitta tem a característica de uma tendência que chamamos de novas raízes, um novo jeito de formarmos nossa identidade. Ela não é mais pautada por governos, cultura ou o lugar a qual nascemos. É muito mais sobre o que que queremos ser, com referências de vários lugares e ganhando essa cara latina-global”
Rebeca de Moraes, especialista da Trop.Soledad
Os latinos tomam o mundo
Quando a entrevistamos, tivemos de enfrentar uma maré de jornalistas interessados nas estratégias (quase mágicas) por trás de tudo. Ou seja, tal forma de se posicionar não só trouxe sucesso como quebrou o estigma de “mulher-fantoche-artista-em ascenção” para uma artista estratégia. E é isso que a cantora revela na entrevista: tudo tem intenção. Como por exemplo a decisão de investir no “pagodão baiano”.
A especialista em tendências tropicais Rebeca de Moraes é a inventora da expressão “miscelânea de coisas” para definir Anitta. Para ela, a cantora é o perfeito exemplo da disseminação da cultura latina. Mas para tal, podemos citar outros exemplos, como os colombianos J Balvin e Maluma que, agora, são presenças confirmadas em programas de televisão pelo mundo inteiro.
Fora da música, temos as séries La Casa de Papel, Vis a Vis, Narcos e Sintonia. Esses investimentos audiovisuais da Netflix não são por acaso: o Lobal – tendência citada pelos principais especialistas em tendências – é o alicerce das novas produções. Além de produtos audiovisuais serem maneiras de difundir culturas e trazer personalização ao consumidor cansado de estereótipos.
E os latinos são mestres nessa técnica. Traduzir cultura não é uma dificuldade por aqui. Desde os primórdios desta civilização, otimizamos a importação de diversas colônias e adaptamos para nossa realidade: vide o sushi com cream cheese paulistano e a pizza com bordas recheadas. Aqui tudo parece ser traduzido e com a internet pudemos levar nossas versões do mundo para além do território do maior país tropical do mundo.
Colômbia re-branded
O interesse no entretenimento latino começou com as novelas mexicanas e hoje quebra fronteiras com o digital, que torna possível um “download” instantâneo de tudo o que produzimos por aqui. Veja, por exemplo, o ressurgimento da Colômbia “re-branded” como um dos países referência em inovação.
Nosso clima quente, árido, sem falar de todas as dificuldades sociais enfrentadas historicamente, talvez tenham sido a razão pela qual precisamos abusar da criatividade e transformar-nos em camaleões culturais.
Essa parece ser a razão e mote profissional de Rebeca de Moraes, que fundou a Trop.Soledad para ser uma consultoria que estuda especificamente a expansão da cultura latina pelo mundo.
“Usamos da antropologia para elaborar nossos estudos. Não haveria antropologia se não falássemos da apropriação de culturas em geral. O que falo aqui é sobre produzir algo novo a partir da cultura. Essa é uma possibilidade de reinvenção. É possível falar de inovação cultural. A tropicalização é parte disso: entender o que rola no mundo, misturar com o que temos aqui e devolvermos para o mundo novamente”
Essa união de conversas entre Anitta e Rebeca de Moraes, você pode ouvir em nosso Podcast. A entrevista com a cantora já publicada em partes na versão impressa da Consumidor Moderno, toma vida no áudio com mais detalhes e revela algumas ambições que trazem à tona o assunto ao qual Rebeca trabalha diariamente para fazer ascender ao grande público.
Anitta seria a nova Carmen Miranda?
Carmen Miranda foi a primeira artista a se internacionalizar. Teria Anitta feito um benchmarking sob a ótica da carreira da atriz e cantora?
Um dos únicos exemplos de artistas extremamente tropicalizadas saídas do Brasil que alcançou a ascensção internacional é Carmen. A premissa é a mesma: elementos extremamente brasileiros, uma miscelânea latina que para a época pode ser chamada de moderno e vanguardista. A cantora traduzia tendências e figurava em filmes da Disney, espetáculos de teatro e programas de televisão. Cantava em português e tinha uma fama ao nível de Marilyn Monroe nos anos 1960.
À época viviamos um ápice de brasilidade: Zé Carioca era um dos personagens principais dos desenhos animados, para citar um exemplo.
Fica aqui então uma questão: será que ainda carregamos o estigma de malandros, espertos e preguiçosos de antes? O cenário pelo menos parece promissor: vide o funk, sertanejo e outros ritmos que estão ganhando o mundo.
Poderíamos fazer um parâmetro e chamar a nova fase da cultura latina como uma nova celebração das raízes tropicais? Vivemos uma releitura de tudo isso? O que sabemos é que o mundo caminha por uma linha tênue que transforma culturas em características e torna eventos culturais em meras passagens corriqueiras. O que entra em voga é o valor de toda a produção cultural, étnica e local. É tempo de celebrar nossas origens.