A cláusula que permite o cancelamento unilateral de contratos de planos de saúde coletivos está no epicentro de um intenso debate na Câmara dos Deputados. Esse dispositivo, que autoriza as operadoras a rescindir contratos sem a necessidade de justificativa, vem provocando um aumento significativo de ações judiciais. Só para exemplificar, somente nos seis primeiros meses de 2024, o número de casos levados à justiça pelo escritório Vilhena Silva Advogados, especializado em direito à saúde, mais que dobrou em relação a todo o ano anterior. A comparação entre os primeiros semestres de 2023 e 2024 indica um crescimento explosivo de 420% nas ações judiciais relacionadas a esse tema.
Atualmente, uma cláusula possibilita que as operadoras cancelarem contratos de planos de saúde coletivos, desde que atendam a requisitos como o aviso prévio de dois meses. Além disso, a operadora é obrigada a garantir a continuidade do atendimento para beneficiários que estejam internados ou em tratamento de doenças graves até a alta.
Entretanto, segundo o advogado Rafael Robba, sócio do escritório Vilhena Silva, a possibilidade de cancelar contratos sem a necessidade de justificar a decisão aos consumidores já vem gerando uma sensação de insegurança há tempos. Para ele, os recentes cancelamentos em massa de contratos coletivos da Unimed e da Amil foram o ponto de saturação, resultando em um aumento de reclamações e ações judiciais. “Esses cancelamentos fizeram a água do copo transbordar, gerando uma onda de queixas e reclamações na Justiça”.
Tudo porque, segundo ele, trata-se de um dispositivo “controverso e amplamente criticado”.
Plano de saúde e relações de consumo
O Projeto de Lei, de autoria do deputado Duarte Jr. (PSB-MA), tem, entre outros objetivos, equilibrar a relação de consumo, trazendo mais proteção aos consumidores nesse quesito. “As operadoras de saúde defendem a manutenção dessa cláusula, argumentando que ela é essencial para a sustentabilidade econômica das empresas. Elas alegam que a possibilidade de cancelar contratos de forma unilateral evita prejuízos financeiros e garante a estabilidade dos serviços oferecidos”, explica Rafael Robba, criticando a ação: “permitir que as operadoras cancelem contratos com a justificativa de gerar sustentabilidade econômica é como dar carta branca para expulsar pessoas em tratamento ou idosos, contradizendo o próprio propósito do plano de saúde, que é garantir assistência aos consumidores quando a doença surge”.
No dia 21 de agosto, ocorreu uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal para tratar o tema. Na ocasião, pessoas em situação de vulnerabilidade que foram alvo de cortes ou descredenciamentos solicitaram ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a instalação de uma CPI para investigar esses cancelamentos, já requerida na Casa legislativa. No debate, que foi solicitado e presidido pelo senador Flávio Arns (PSB-PR), também foi ressaltada a omissão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) diante dos abusos das operadoras. A audiência pública, realizada de forma virtual, contou com a presença de um representante do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que prometeu ações governamentais em prol dos “hipervulneráveis”.
Os hipervulneráveis
Letícia Fantinatti de Mello, fundadora da Associação Vítimas a Mil, afirmou que, mesmo após a reunião entre os representantes dos planos de saúde e o presidente da Câmara no primeiro semestre deste ano, os cancelamentos continuam. Ela apontou uma situação ainda mais grave: as seguradoras estariam “camuflando” os cancelamentos com um descredenciamento em massa de serviços e unidades. Para ela, isso indica que “os planos preferem operar apenas com uma rede própria”. “Em alguns casos, não houve cancelamento, mas os locais foram descredenciados, e as pessoas seguem enfrentando os mesmos problemas para continuar seus tratamentos. Portanto, eu diria que é a mesma coisa”.
Letícia de Mello mencionou o caso de uma mulher de 76 anos, residente em Barueri (SP), que gasta cerca de R$ 5 mil por mês com seu plano de saúde. A idosa precisou de atendimento no pronto-socorro local e descobriu que seu plano, da Amil, havia sido descredenciado. As opções de atendimento mais próximas oferecidas foram em Osasco ou no Bairro da Liberdade, em São Paulo, o que é considerado irregular, já que a ANS exige que alternativas sejam apresentadas dentro de um raio de 8 km em caso de descredenciamento.
Por sua vez, Juliana Elvira Herdy, médica e mãe de um adolescente autista, denunciou o cancelamento do plano de saúde do filho mesmo após uma reunião entre Arthur Lira e operadoras. Ela destacou a dificuldade de portabilidade para clientes vulneráveis devido à falta de planos equivalentes, burocracia e falta de regulamentação clara. Juliana afirmou que operadoras e corretoras atuam como um cartel, sem fiscalização da ANS, dificultando a continuidade das terapias essenciais para seu filho, que sofreu crises graves após a interrupção dos serviços.
Lucro das operadoras
Fabiane Alexandre Simão, mãe de um filho com autismo e presidente da Associação Nenhum Direito a Menos, criticou o cancelamento de planos de saúde. Ela acredita que a ação é motivada pelo lucro das operadoras. “Ou seja, os planos de saúde negligenciam os direitos de pessoas com deficiência e idosos”. Fabiane denunciou ainda Arthur Lira por não abrir uma CPI sobre o tema, alegando que ele faz acordos secretos com planos de saúde para interromper cancelamentos unilaterais, caso aceitem planos segmentados.
“Considero essa postura um ataque à democracia. Estamos falando de decisões autoritárias que ignoram as necessidades da população. A tática das operadoras é cancelar os contratos e, em seguida, oferecer planos com coparticipação”, denuncia Fabiane.
Os participantes criticaram a ANS pela falta de iniciativa na regulamentação, fiscalização e transparência no setor de saúde. Letícia Mello destacou que muitos consumidores enfrentam restrições para reclamar no sistema da ANS. “Inegavelmente, isso impede a coleta de dados e a responsabilização das operadoras”, comenta ela. O senador Flávio Arns classificou os relatos como graves e se comprometeu a documentá-los, pedindo uma audiência pública com a ANS. Ele enfatizou a importância de atender as pessoas mais vulneráveis. Primordialmente, aquelas com deficiência e autismo. “A ANS deve garantir acesso e evitar práticas que priorizem o lucro em detrimento das necessidades dos pacientes”.
Litígios
O número de processos ajuizados contra operadoras de planos de saúde atingiu 234.111 em 2023. O número reflete um aumento de 60% em relação ao total de ações registradas há quatro anos. Em suma, 2020 marca o início da série histórica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na época, o órgão contabilizou 145.695 processos. Comparando com 2022, a alta foi de 33%, com mais de 238.000 novas ações registradas de um ano para outro.
O total de processos contra planos de saúde supera o número de ações movidas contra o Sistema Único de Saúde (SUS). Isso se dá na maior parte dos Tribunais de Justiça Estaduais. Os estados de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais concentram a maior parte dos casos e apresentam as maiores diferenças. Confira a comparação nos quatro estados em 2023:
- Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP): 79.749 novos casos contra planos de saúde, em contraste com 355 contra o SUS;
- Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA): 33.283 novos casos contra planos de saúde, comparado a 494 contra o SUS;
- Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ): 23.613 novos casos contra planos de saúde, diante de 3.878 contra o SUS;
- Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG): 14.098 novos casos contra planos de saúde, em comparação a 3.156 contra o SUS.
Os dados correspondem a Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud).
Os dois tipos de planos de saúde
Existem dois tipos principais de planos de saúde. Em primeiro lugar, o individual, que é contratado diretamente por uma pessoa para si ou para a sua família. E, em segundo lugar, o coletivo. Geralmente, o plano coletivo é negociado por empresas para seus funcionários ou por sindicatos e entidades de classe para seus associados. Nos planos individuais ou familiares, a legislação proíbe o cancelamento unilateral do contrato, exceto em casos de inadimplência ou fraude.
Por outro lado, essa mesma regra não se aplica aos convênios coletivos, onde as empresas frequentemente realizam o cancelamento, utilizando cláusulas previstas no contrato assinado.