Na semana passada, o Nubank lançou uma campanha inédita para conscientizar seus clientes sobre os riscos associados às transferências via Pix para plataformas de apostas esportivas, conhecidas como “bets“. A nova funcionalidade começa verificando a origem da chave Pix e perguntando ao usuário se a transferência é destinada a uma plataforma de apostas. Em seguida, apresenta uma mensagem de alerta: “Que tal guardar esse dinheiro? Alguns desses jogos são legalizados no Brasil, porém não há garantias de ganho. Guardando esse dinheiro, em vez de apostar, você tem certeza de que ele vai render sem preocupação”.
Em um cenário onde o mercado de apostas online cresce exponencialmente no país, a iniciativa busca alertar os usuários sobre fraudes, práticas abusivas e os impactos financeiros que podem surgir ao realizar transações para esse tipo de serviço. Em nota, o Nubank afirmou estar sempre em busca de oportunidades para melhorar a experiência dos clientes: “Realizamos com frequência testes de novos produtos e soluções para uma pequena parcela da base de usuários. Quaisquer novidades ou atualizações serão compartilhadas no momento oportuno”.
A iniciativa se soma a outros exemplos do mercado em relação a um fenômeno que vem se tornando cada vez mais presente no País que, se por um lado permite o acesso do consumidor a produtos mais premium, por outro pode acarretar em perdas financeiras e maior endividamento.
Segurança
A preocupação do Nubank em relação às bets, evidenciada pela mensagem automática ao cliente, é mais um exemplo de como as empresas do setor financeiro estão buscando gerar mais segurança contra fraudes e maior educação financeira aos consumidor brasileiros.
Após o anúncio, as associações AIGAMING, ABRAJOGOS e ANJL lançaram uma nota de repúdio, afirmando que a iniciativa “fere os princípios de isonomia e liberdade econômica, extrapolando o papel do banco enquanto instituição financeira regulamentada”. Segundo as associações, uma vez que o setor de apostas é legalizado no Brasil, o Nubank estaria se posicionando contra a atividade. Ainda, o comunicado aponta que o alerta não é emitido para compras de produtos como bebidas alcóolicas e cigarros, ou então para sites ainda não regulados.
“Não faz sentido algum que os alertas não sejam ativados para esses operadores ilegais, piorando ainda mais o cenário em vez de ajudar a fortalecer a regulação no país”, afirmou Plínio Lemos Jorge, presidente da ANJL.
No entanto, a prática é similar a medidas de diferentes bancos, que notificam o consumidor para que evite fazer um Pix para um endereço ou chave falsos e caia em um golpe virtual. Em outro caso, o Bradesco, por exemplo, passou a incluir o hábito de apostas online na análise de crédito dos clientes, enquanto outras instituições financeiras estudam adotar a mesma iniciativa. Até mesmo o Congresso Nacional estuda proibir o uso de cartão de crédito e contas bancárias do programa Bolsa Família em apostas online, mesmo em modalidades permitidas no País, por meio do Projeto de Lei 3670/24. Atualmente, o PL está sujeito à apreciação conclusiva.
Segundo o Estudo Nacional sobre Bets, realizado pela Febraban em parceria com a Confederação Nacional das Instituições Financeiras e pelo IPESPE, divulgado em dezembro de 2024, 40% dos entrevistados afirmaram que familiares ou pessoas próximas fizeram dívidas devido às apostas, e desse montante, 45% tiveram a qualidade de vida afetada em função desse endividamento. Ainda, 79% dos entrevistados acreditam que as bets causam mais problemas financeiras do que ajudam a resolvê-los (13%).
O estudo também aponta que o Pix é o principal meio de pagamento utilizado para realizar transferências para casas de apostas online. 79% jogam via Pix, enquanto 24% utilizam o cartão de crédito e 18% usam o cartão de débito. Ainda, 17% realizam transferências bancárias. A pesquisa ainda aponta que “modelar e regular o uso do pix nas apostas é um desafio que não pode interferir nas liberdades individuais do cidadão“.
Apostas = produtos premium
As apostas online se consolidaram como uma realidade no Brasil, e as empresas precisam aprender a lidar com esse novo cenário. De acordo com dados do Banco Central, em 2024, o volume mensal de transferências via Pix de pessoas físicas para as chamadas “bets” variou entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões – valores que poderiam ser direcionados para alimentação, transporte, lazer e outros gastos do cotidiano.
“A tradição da sociedade brasileira sempre teve o jogo como elemento central. As pessoas sempre colocaram dinheiro no Jogo do Bicho. Porém, agora, para além disso, o consumo tem sido transformado em aposta. Na cabeça do consumidor, se ele apostar e vencer, terá a possibilidade de acessar produtos mais premium”, explica o antropólogo e sócio do Grupo Consumoteca, Michel Alcoforado.
A dinâmica dessas apostas também evoluiu. Antes, elas se baseavam puramente na sorte, mas agora é possível aplicar apostas, por exemplo, no resultado de partidas de futebol – um esporte em que muitos brasileiros se consideram especialistas. Essa mudança altera a percepção de ganho, tornando mais atrativa a ideia de substituir um consumo imediato pela chance de conquistar produtos ou experiências que, normalmente, não estariam ao alcance do apostador.
“Precisamos prestar atenção, porque esse é um negócio que veio para ficar. O consumidor, que está com a máquina do cassino no bolso, se vê mais disposto a jogar e, óbvio, tem deixado de comprar para poder tentar a sorte”, alerta Alcoforado.
Impacto das bets no consumo
O impacto desse comportamento é significativo: 54% do montante apostado, equivalente a R$ 66,8 bilhões, está deixando de ser destinado a despesas de consumo das famílias brasileiras, de acordo com um levantamento do Grupo Consumoteca. O setor de alimentação dentro de casa, por exemplo, já enfrenta uma redução de R$ 12,5 bilhões, enquanto o mercado de lazer sofre um impacto de R$ 9,9 bilhões.
De acordo com Alcoforado, muitas pessoas aceitam consumir produtos de qualidade inferior em um dia, na esperança de que, com um golpe de sorte nas apostas, possam melhorar suas condições no futuro – ou, como dizem, “se o tigrinho ajudar”. E mesmo que o consumidor perca grandes quantias ao longo do tempo, quando ganha, o dinheiro tende a ser direcionado para categorias premium. “Isso significa que produtos comuns, mais voltados para o dia a dia, são os mais impactados”, alerta Alcoforado.
Nesse cenário, o Brasil já ocupa a posição de terceiro maior mercado de apostas do mundo, com gastos que representam 2,3% do orçamento familiar e cerca de 1,1% do PIB nacional.
As expectativas para os próximos anos indicam um crescimento constante. Até 2026, estima-se que a receita bruta das empresas de apostas alcance R$ 5,5 bilhões, impulsionada pelo aumento do número de apostadores, maior segurança regulatória e avanços tecnológicos.
“As pessoas entram neste negócio por não terem outra escolha em termos de acesso a bens de consumo. Se é proibido ou limitado, muda o comportamento, mas não vai resolver o dilema. A questão aqui não está apenas no joguinho; ele é uma saída tecnológica para algo que está dado pela cultura. Se continuar assim, a tendência é só crescer”, finaliza.