O fenômeno das apostas online no Brasil veio para ficar e as empresas precisarão entender como lidar com essa nova realidade. Afinal, neste ano o volume mensal de transferências de pessoas físicas via PIX para as chamadas “bets” variou entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões, segundo o Banco Central – valor que deixa de ser gasto em alimentação fora de casa, transporte, lazer, entre outros.
Durante o Retail Summit 2024, evento realizado pela Consumidor Moderno no Panamá, Michel Alcoforado, antropólogo e sócio do Grupo Consumoteca, apresentou a pesquisa inédita “Economia do Retorno”, que traz um panorama detalhado sobre os consumidores das bets. O alerta é claro: as pessoas estão deixando de consumir para apostar.
“A tradição da sociedade brasileira sempre teve o jogo como elemento central. As pessoas sempre colocaram dinheiro no Jogo do Bicho. Porém, agora, para além disso, o consumo tem sido transformado em aposta. Na cabeça do consumidor, se ele apostar e vencer, terá a possibilidade de acessar produtos mais premium”, explica Alcoforado.
A principal diferença é que antes essas apostas dependiam da sorte, mas agora a possibilidade de apostar, por exemplo, no resultado de um jogo de futebol – esporte que o brasileiro acredita ser grande entendedor – muda as perspectivas da possibilidade de lucrar. Por isso, a decisão de deixar de consumir algo para apostar e ter a chance de acessar uma categoria de produtos que, geralmente, não teria capacidade de comprar, torna-se algo plausível.
Essa lógica é chamada por Alcoforado de “economia de retorno”: o dinheiro gasto em apostas é visto como um investimento para aumentar o poder de compra.
O impacto no consumo e no orçamento familiar
O impacto desse comportamento é tão grande que 54% do volume apostado (R$ 66,8 bilhões) está deixando de ir para alguma despesa de consumo das famílias brasileiras. O mercado de alimentação dentro de casa, por exemplo, já registra um impacto financeiro de R$ 12,5 bilhões. Já no de lazer, o impacto é de R$ 9,9 bilhões.
Segundo Alcoforado, as pessoas não se preocupam em consumir produtos de menor qualidade em um dia se, ao apostar, existir a possibilidade de, em algum momento, ter uma alimentação melhor “se o tigrinho ajudar”. E, mesmo que o consumidor perca muito dinheiro com essas apostas, uma vez que ele ganha, o consumo é direcionado para uma categoria premium. “Então, produtos que não são premiums, os mais cotidianos, sofrerão mais”, alerta Alcoforado.
Nessa toada, o Brasil tornou-se o terceiro maior mercado de apostas do mundo, com um gasto total que representa 2,3% do orçamento das famílias brasileiras e cerca de 1,1% do PIB do País.
A projeção para os próximos anos é de crescimento contínuo. Até 2026, espera-se que o GGR (receita bruta das empresas de apostas) atinja R$ 5,5 bilhões, impulsionado pela expansão do número de apostadores, maior segurança regulatória e inovações tecnológicas.
Quem são os apostadores brasileiros?
O perfil do apostador no Brasil é diverso. Ainda de acordo com a Pesquisa Economia do Retorno 2024, enquanto os homens ainda representam a maioria dos apostadores esportivos (52%), o número de mulheres apostando em rifas e sorteios é significativo, refletindo uma democratização do setor. As gerações mais jovens, especialmente a Geração Y (Millennials), são as que mais apostam, com a maior parte dos apostadores residindo nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil.
E quem acredita que as apostas é um costume das classes mais altas, está enganado. A classe BC concentra a maioria dos apostadores. Isso mostra que as apostas não estão mais restritas a nichos específicos, mas abrangem uma grande parcela da população brasileira.
“No cálculo do consumidor, o acesso a pequenos luxos possibilitado pelo retorno pontual que a aposta pode dar faz a restrição momentânea valer à pena. Então não tem problema comer salsicha um dia se no outro ele poderá comprar um file mignon”, explica Alcoforado. “É a busca por acesso aos pequenos luxos que faz economizar para jogar”, completa.
A “Economia do Retorno”
Para além da busca pelo upgrade da capacidade de compra na vida cotidiana, o conceito de “Economia do Retorno” também envolve sentimentos como validação, pertencimento a um grupo e a sensação de estar maximizando suas escolhas e recursos financeiros. O ganho inesperado gera uma sensação de satisfação e possibilidade de sonhar com uma nova realidade.
“Essa economia do retorno trabalha em uma concepção que vai mudar o comportamento do consumidor brasileiro em relação ao seu próprio consumo. Isso porque essas atividades do dia a dia, a repetição de atividade de marcas que eu comprava por estar na minha rotina, perde a importância, dando lugar para uma maximização nesse retorno”, explica.
Dessa forma, as apostas ganham cada vez mais espaço por passarem a ideia de que o dinheiro foi usado melhor forma e rendeu mais. “Mesmo que a pessoa gastou mais, criou uma dívida, ela sai com a ideia de que se deu melhor”, diz Michel. “Outro ponto importante é a dopamina. Aposta é entretenimento, passatempo, porém, com uma chance de ganho maior. Ou seja, existe a ideia de dopamina instantânea. Além disso, aquele que ganha, se sente melhor que o grupo. Existem grupos de ganhos de apostadores. Eles estimulam em qual momento é melhor para apostar. Além disso, quando pensamos em classes populares, existe a validação de uma expertise”, complementa.
Os desafios da regulação e o futuro das apostas no Brasil
O mercado de apostas cresceu significativamente, trazendo uma série de desafios. Um dos principais pontos mencionados por Michel Alcoforado é a guerra de narrativas em torno do impacto das apostas. Instituições e órgãos diversos adotam diferentes abordagens metodológicas para calcular os efeitos econômicos, sociais e comportamentais das apostas, o que dificulta a criação de políticas públicas eficazes.
“Precisamos prestar atenção, porque esse é um negócio que veio para ficar. O consumidor, que está com a máquina do cassino no bolso, se vê mais disposto a jogar e, óbvio, tem deixado de comprar para poder tentar a sorte”, alerta Alcoforado.
Há uma crescente preocupação com o aumento da dependência em jogos de azar, que pode levar a pressões por regulamentações mais restritivas. Mudanças abruptas na legislação, como a imposição de novas exigências de licenciamento ou restrições à publicidade, podem impactar negativamente a rentabilidade das empresas de apostas, ao mesmo tempo que aumentam a burocracia para operar.
As previsões para o futuro indicam que o mercado de apostas online continuará crescendo. A Pesquisa Economia do Retorno 2024, revela que 92% dos consumidores pretendem continuar apostando em 2024, sendo que 51% deles devem manter a frequência e o valor, e 7% esperam aumentar esses parâmetros. Outros tipos de apostas, como rifas, sorteios e cassinos online, também devem registrar crescimento.
“Nesse processo, o que veremos nos próximos anos? Se não regulamentar, não vai parar. Ao mesmo tempo, uma problematização que precisamos fazer é que as pessoas que agora pedem para regulamentar, são as mesmas que pedem para reativar tudo; aqueles que pedem presença do Estado, são os que pedem a saída do Estado”, comenta.
Em resumo, o mercado de apostas no Brasil, impulsionado pela “economia do retorno”, tem reconfigurado o comportamento de consumo e se estabelecido como um setor em expansão. Ao mesmo tempo, o crescimento rápido levanta preocupações sobre os impactos no orçamento das famílias e a necessidade de uma regulamentação mais robusta para mitigar os riscos associados às apostas.
“As pessoas entram neste negócio por não terem outra escolha em termos de acesso a bens de consumo. Se é proibido ou limitado, muda o comportamento, mas não vai resolver o dilema. A questão aqui não está apenas no joguinho; ele é uma saída tecnológica para algo que está dado pela cultura. Se continuar assim, a tendência é só crescer”, finaliza.