Uma beneficiária de plano de saúde conta sua história. “Estou em tratamento oncológico. Primeiro, a Unimed me cancelou, entrei com uma ação e ganhei a liminar. Quando tentei pagar, a Qualicorp também tinha me retirado e, portanto, não consegui. Meu advogado ia colocar no processo, mas fiz uma reclamação e a operadora liberou os boletos. Agora vem o pior: com um aumento de quase 45%. Como um idoso pode arcar com isso?”, questiona a consumidora Vera Lúcia Lucas Pinto.
Casos iguais ao dela são muitos. E na tentativa de reverter o cenário em que beneficiários de planos de saúde estão sendo surpreendidos com péssimas notícias, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) notificou 20 operadoras de planos de saúde.
No documento, a pasta, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, menciona um aumento nas Notificações de Intermediação Preliminar (NIPs) registradas. Esse é um mecanismo da Agência Nacional de Saúde (ANS) para mediar conflitos entre planos de saúde e beneficiários.
O lado dos planos de saúde
Foram notificadas pela Senacon as seguintes operadoras: Unimed Nacional; Bradesco Saúde; Amil; SulAmérica; NotreDame Intermédica; Porto Seguro Saúde; Golden Cross; Hapvida Notredame; GEAP Saúde; ASSEFAZ; Omint; One Health; Prevent Senior; Assim Saúde; MedSênior; Care Plus; União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas); Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde); Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge); e Associação de Assistência Médica Planejada (Ameplan).
Em nota, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz que recebeu a notificação. A princípio, ela se diz “à disposição para contribuir com informações técnicas na busca por elucidar pontos importantes sobre as operadoras dos planos de saúde e às regras a que estão submetidas”.
“A entidade reafirma seu compromisso institucional na busca pela sustentabilidade do setor de saúde suplementar, cujo objetivo é oferecer atendimento eficiente e de qualidade ao beneficiário”, diz a Abramge.
O lado dos beneficiários dos planos de saúde
Em contraste com a sustentabilidade, milhares de clientes da Qualicorp receberam recentemente comunicados de rescisão unilateral de seus contratos com a Amil. A notificação, enviada por e-mail e disponível no aplicativo da empresa, informa que os contratos com a operadora teriam término previsto no dia 31 de maio. Ou seja, a partir de 1º de junho de 2024, os consumidores não estarão mais cobertos pelo plano de saúde.
Em síntese, por meio de nota, a Amil confirmou o cancelamento dos contratos. O motivo, segundo a operadora, é o “desequilíbrio econômico e financeiro dos conjuntos de contratos”.
A decisão foi tomada porque esses contratos, negociados pelas administradoras de benefícios diretamente com as entidades de classe, por meio de corretoras, têm apresentado, ao longo dos anos, um desequilíbrio extremo entre receita e despesa. “Chegamos à conclusão de que não é viável realizar um ajuste para corrigir esse grave problema”, diz a Amil.
“Por certo, a justificativa é totalmente descabida, ainda mais considerando os reajustes abusivos que estão sendo verificados nos contratos coletivos, que chegam a 25%”, enaltece o advogado Stefano Ribeiro Ferri, assessor da 6ªTurma do Tribunal de Ética da OAB/SP. “É premente que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) amplie a proteção conferida aos planos de saúde individuais para os coletivos, evitando que os consumidores fiquem em uma situação de onerosidade excessiva”.
Lei dos Planos de Saúde
Consoante a Lei dos Planos de Saúde, é, sim, permitida a suspensão do contrato de saúde em planos de forma geral. No caso dos planos coletivos, as empresas devem notificar os consumidores com 60 dias de antecedência, ou conforme a exigência de notificação prévia ao contratante.
É importante ressaltar que, segundo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), os planos de saúde coletivos não podem ser cancelados unilateralmente enquanto o paciente estiver em tratamento de doença grave.
Ocorre que muitos dos beneficiários estão desesperados, justamente porque estão em tratamento. Entre eles, em primeiro lugar estão os casos de câncer. E em segundo lugar, os de autismo.
Distrito Federal
A Justiça do Distrito Federal então concedeu uma liminar que proíbe os planos de saúde de excluírem pacientes autistas do serviço, com exceção de casos de inadimplência.
Caso os planos de saúde descumpram a exigência, haverá uma pena de multa diária no valor de R$ 59 mil. A decisão da Justiça também impede o cancelamento das operadoras de pacientes com doenças raras e paralisia cerebral.
Nesse hiato, a liminar judicial aponta ainda que todos os segurados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) unilateralmente cortados pelos planos de saúde devem ser readmitidos imediatamente. E essa readmissão deve se dar nas mesmas condições anteriores à rescisão, mediante pedido formalizado pelos segurados, a ser atendido em até três dias.
Rio de Janeiro
Em contrapartida, no Rio de Janeiro, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os abusos na prestação de serviços dos planos de saúde. E, principalmente, os casos de rescisão unilateral das pessoas com deficiência. No dia 23 de maio, a Assembleia Legislativa da capital fluminense (Alerj) decidiu criar a CPI.
O deputado estadual Fred Pacheco (PMN), autor do pedido de CPI, afirmou: “essa é uma vitória do povo do Rio, mas, acima de tudo, é uma vitória dos pais e mães de pessoas com deficiência, que lutam com grande coragem. De fato, desde o ano passado, temos buscado uma solução para evitar interrupções nos tratamentos. Como não obtivemos sucesso, decidimos criar a CPI para resolver essa situação”.
CPI dos Planos de Saúde
A fisioterapeuta Fabiane Alexandre Simão, presidente da Associação Nenhum Direito a Menos e mãe de Daniel, um menino de nove anos com paralisia cerebral e transtorno do espectro autista, ressalta a importância da CPI dos Planos de Saúde. Para ela, será um alívio para as mães e pais de pessoas com deficiência, pois revelará o que está por trás das medidas adotadas pelas operadoras de planos de saúde. Ela denuncia que os planos estão negando o direito à saúde e, consequentemente, à vida dos filhos, colocando-os em risco de morte e sem possibilidade de tratamento médico adequado.
Recentemente, um grupo de mães protestou contra o cancelamento unilateral do plano de saúde Amil para pessoas com transtorno do espectro autista, em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo estadual. E essa situação também está ocorrendo em outros estados e envolvendo outras empresas de planos de saúde.
Stefano Ribeiro Ferri, especialista em direito do consumidor e saúde, destaca que o cancelamento unilateral, nos casos de tratamento de saúde, é ilegal. Então, o usuário pode exigir seus direitos. De acordo com o membro da comissão de Direito Civil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Campinas, o beneficiário que sofrer esse tipo de cancelamento pode recorrer à Justiça para garantir a continuidade do contrato até a finalização do tratamento, sem prejuízo de eventual indenização por danos morais decorrentes dos transtornos e constrangimentos enfrentados.
Regras ANS
Ademais, é importante salientar que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ampliou em junho de 2022 as regras de cobertura para os casos de transtornos globais do desenvolvimento, como o transtorno do espectro autista. De conformidade com isso, fica obrigatória a cobertura de qualquer método ou técnica recomendada pelos médicos para o tratamento de pacientes com transtornos globais do desenvolvimento.
São Paulo
Esses transtornos englobam condições que dificultam a comunicação e o comportamento, afetando a interação social e o enfrentamento de situações cotidianas. A norma também inclui sessões ilimitadas com fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas para todos os transtornos globais do desenvolvimento.
Na maior cidade do país, o Procon-SP constatou um aumento de 85% nas reclamações de consumidores em relação a cancelamentos unilaterais de contratos de planos de saúde entre abril e maio deste ano.
Durante uma audiência na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, Robson Campos, representante do Procon-SP, informou que têm sido registrados cancelamentos de planos de idosos, pessoas autistas e pessoas com doenças raras.
Campos revelou que esses contratos são simplesmente cancelados, muitas vezes por e-mail, inclusive durante o tratamento de câncer e outros tratamentos essenciais. Isso causa agravamento das doenças e endividamento das famílias desesperadas, que acabam contratando crédito para pagar pelos custos particulares. Em seu parecer, “os consumidores de planos de saúde são extremamente vulneráveis e precisam de proteção”.
Mudanças na legislação
Assim, ele sugeriu alterações na Lei dos Planos de Saúde para proibir rescisões unilaterais em planos coletivos empresariais ou por adesão. Vitor Hugo Ferreira, da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, afirmou que a resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que permite a rescisão unilateral não pode se sobrepor à legislação de defesa do consumidor.
E, por sua vez, Carla Soares, representante da ANS, disse que a Lei dos Planos de Saúde só proíbe o cancelamento unilateral de contratos individuais. Carla esclareceu que as empresas não podem selecionar consumidores específicos para terem os planos cancelados, apenas cancelar contratos inteiros. Ela também enfatizou que o prazo mínimo de 12 meses de contrato deve ser respeitado, assim como a continuidade dos tratamentos em andamento. Por outro lado, Marcos Novais, da Associação Brasileira de Planos de Saúde, explicou que as operadoras têm apresentado um resultado negativo de R$ 17 bilhões nos últimos três anos e estão buscando o equilíbrio financeiro. Ele destacou, inclusive, que, entre 2022 e 2023, a ANS encerrou as atividades de 138 empresas devido à falta de sustentabilidade financeira.
Na oportunidade, Novais criticou a rápida incorporação de medicamentos caros, como o Zolgensma para a atrofia muscular espinhal, que custa cerca de R$ 10 milhões. Segundo ele, 379 operadoras faturam menos de R$ 7 milhões por mês. Diante da gravidade da situação, o deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) afirmou que está coletando assinaturas para criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os abusos cometidos pelas operadoras de planos de saúde contra os consumidores.
Lucro x Prejuízo
Já o deputado Celso Russomanno (Republicanos-SP) ressaltou a necessidade de investigar como os planos de saúde estão gerando prejuízo enquanto os hospitais ligados a eles continuam obtendo lucro.
Robson Campos enfatizou que a prática é considerada abusiva em termos de proteção ao consumidor, mas não é proibida pela Lei Federal nº 9.656/1998 e é, inclusive, autorizada pela resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a qual permite o cancelamento unilateral do contrato após 12 meses de contratação.
Proibição do cancelamento unilateral
O Procon-SP propôs a alteração do parágrafo único do artigo 13 da Lei nº 9.656/1998. O propósito da ação é proibir o cancelamento unilateral dos planos contratados “de forma individual ou coletiva”. Por consequência, segundo o órgão, haverá condições de proporcionar proteção a todo o mercado de consumidores da saúde suplementar.
No momento, mais de 80% do mercado de saúde suplementar é composto por contratos de planos de saúde coletivos. Em suma, isso se dá quando o consumidor contrata o plano por estar ligado a uma associação, sindicato ou conselho de classe. O contrato também pode ser empresarial. Nesse caso, o usuário é funcionário da empresa. Esses contratos são estabelecidos entre as empresas (operadora de plano de saúde e empregador ou associação/sindicato). Já as negociações são realizadas diretamente entre elas, seguindo regras diferentes dos planos individuais e familiares.
Outro ponto a ser destacado é a questão dos reajustes anuais, os quais não necessitam de autorização prévia da ANS. Os percentuais de reajuste são negociados entre a operadora e a pessoa jurídica contratante. Em outras palavras, a soma leva em consideração o custo dos serviços médicos utilizados pelos consumidores/beneficiários do plano. Com reajustes elevados, o consumidor muitas vezes fica sem opção para continuar com o contrato.
O Procon-SP e o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) estão trabalhando em conjunto para melhor regular os planos coletivos. O objetivo é proteger os consumidores, considerados “vulneráveis” pela Lei nº 8.078/1990.
Tema 123 – STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu uma decisão unânime ao rejeitar os embargos do Tema 123. Assim, a instância superior manteve a aplicação da Lei dos Planos de Saúde somente para contratos celebrados a partir de sua vigência.
Beneficiários que mantiveram planos antigos inalterados não serão afetados pela lei. Alguns tribunais passaram a aplicar o Código de Defesa do Consumidor para deferir coberturas não previstas em contrato. A restituição dos valores pagos por liminar não confirmada em sentença é possível.
Leonardo Camiza Machado, advogado das áreas de Direito Civil e de Relações de Consumo do escritório Silveiro Advogados, explica: a decisão incide sobre contratos não regulamentados de planos de saúde, firmados antes de 1999.
“O STF fundamentou seu entendimento na proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido”, afirma Machado, membro da Comissão Especial do Direito à Saúde da OAB/RS. “Assim, o Supremo argumentou que a nova legislação não pode se aplicar a contratos antigos de planos de saúde. Isso por conta da previsibilidade de riscos e coberturas no momento da celebração dos contratos”.