O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é fundamental para proteger os direitos de todos nós, consumidores. E toda essa proteção se dá tanto nas compras e quanto na contratação de serviços no Brasil. Afinal, o instrumento, criado para equilibrar as relações de consumo, garante não somente que os consumidores tenham seus direitos respeitados, mas promove a transparência nas transações.
Entretanto, será que as regras do CDC valem para as compras internacionais?
Vamos imaginar a seguinte situação: João compra, por meio da internet, um software de Inteligência Artificial (IA) que lhe ajudará a desenvolver imagens. Na página da ferramenta, há a informação que o consumidor pode comprá-la e testá-la, em um prazo de sete dias. E, se não gostar ou não tiver mais interesse em ficar com o produto, nenhum valor será cobrado. Ocorre que, no sexto dia, João cancela o pedido. Entretanto, a fatura é lançada no seu cartão de crédito.
Ele liga e envia e-mails para a empresa. Em vão. Ele então entra em contato com a operadora do cartão de crédito, que diz “sinto muito”. E ainda completam: “como a transação foi feita pelo senhor e, portanto, autorizada, não podemos cancelá-la”.
CDC nacional ou internacional?
Diante dessa situação, João se vê em um impasse, vez que seu direito de desistir da compra dentro do prazo estipulado não está sendo respeitado. A primeira ação que ele toma é documentar todas as tentativas de contato com a empresa. Isso inclui e-mails, chats e ligações, deixando claro seu desejo de cancelar o serviço sem a cobrança.
Ele também tentou entender as políticas da empresa sobre cancelamentos e reembolsos. Isso porque muitas vezes essas informações estão disponíveis nos Termos de Serviço ou na Política de Devolução que a marca deve disponibilizar. Mas a empresa continuou a ignorar a solicitação de cancelamento e a cobrança injustificada persistiu. João então começou a considerar a possibilidade de levar a questão aos órgãos de defesa ao consumidor em sua região, como o Procon, por exemplo.
Mas, qual é o alcance do CDC nas questões de questões de comércio eletrônico internacional?
Thais Matallo, sócia da área de Direito das Relações de Consumo do Machado Meyer Advogados, explica: ante o aumento de compras internacionais, realizadas por meio de viagens ou via internet, a aplicação do CDC tornou-se uma dúvida comum entre os consumidores. E esse está sendo um tema bem debatido no âmbito dos tribunais.
“De modo geral, o consumidor residente no Brasil pode buscar a justiça brasileira para julgar temas relacionados a relações de consumo. No entanto, é necessário que o fornecedor possua um representante em território brasileiro. Como uma filial, por exemplo. Isso vale para que a justiça brasileira possa assegurar o cumprimento de suas decisões”, assegura Thais Matallo.
Assunto sem entendimento
No âmbito de tal processo, não há um entendimento uniforme a respeito da aplicação do CDC. “Há quem sustente a sua aplicação tendo em vista a finalidade protetiva do CDC. E há, por outro lado, entendimento de que, ainda que o juiz brasileiro seja visto como competente para julgar casos desse tipo, só poderá fazê-lo com base na norma estrangeira ou na garantia contratual”, explica Danielle Iglesias, advogada da área de Direito das Relações de Consumo do Machado Meyer Advogados.
De toda forma, a possibilidade de responsabilização deve ser vista com ressalvas, tendo em vista que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece que o ato jurídico (no caso, a compra) deve ser regido pela lei do local onde foi realizado, o que dependerá da análise do juízo caso a caso”.
Vícios em compras no exterior
No caso de João, Thais Matallo orienta que o consumidor pode buscar responsabilizar o fornecedor por vícios em compras realizadas no exterior. No entanto, caso a empresa estrangeira não possua representação ou filial no Brasil, a justiça brasileira não poderá assegurar o cumprimento de eventuais decisões. Adicionalmente, ainda que haja representação ou filial, o fornecedor poderia discutir a aplicação das garantias e regras de devolução previstas no CDC, com base no fato de a compra ter sido realizada em site internacional.
O debate acerca da aplicabilidade do CDC em situações que envolvem contratos internacionais é de suma importância. Por um lado, a proteção ao consumidor é um princípio basilar do CDC, o que justificaria sua aplicação em casos que envolvem consumidores nacionais, independentemente da origem da contraparte no contrato. Esse entendimento busca assegurar que o consumidor, frequentemente na posição mais vulnerável, seja protegido contra práticas abusivas e desleais.
Por outro lado, existe o argumento de que esses casos devem ser analisados com base nas legislações estrangeiras ou nas cláusulas contratuais que regem a relação comercial, uma vez que a transação ocorreu em um contexto internacional. Este argumento se fundamenta no princípio da autonomia da vontade das partes, que confere ao contrato uma certa liberdade para que as partes escolham a legislação aplicável. Assim, os críticos da aplicação do CDC nestes casos defendem que a escolha da norma deve respeitar as especificidades do mercado internacional e as regulamentações vigentes no exterior.
Cláusulas contratuais
Além disso, a interpretação das cláusulas contratuais, especialmente aquelas que envolvem a limitação de responsabilidade e a definição de jurisdição, pode ser complexa. É essencial que as partes envolvidas estejam cientes dos direitos que estão abrindo mão ou das garantias que estão estabelecendo. A clareza nessas negociações contribui para evitar litígios futuros e a insegurança jurídica que poderia advir da aplicação de uma normatização inadequada.
Portanto, a solução para essa questão pode exigir uma análise detalhada do caso concreto, levando em conta não apenas a legislação nacional, mas também as particularidades do contrato e a proteção efetiva do consumidor. A construção de um consenso sobre a coexistência do CDC e das legislações estrangeiras é fundamental para garantir um ambiente de negócios mais justo e equilibrado, que respeite os direitos do consumidor sem desconsiderar acordos firmados em nível internacional.