Muita gente conhece o Yakult por causa do famoso leite fermentado com lactobacilos vivos, mas a marca japonesa também tem um cardápio voltado ao paladar mais sofisticado dos endinheirados. A carne do boi Wagyu foi introduzida no Brasil pela companhia em 1995 e, desde então, não há um carnívoro ou crítico de gastronomia que não sonhe em degustar a iguaria, que chega a custar US$ 1.000 o quilo no Japão. Mas o que há de tão especial no bife? O Wagyu é um tipo de gado considerado “puro”, diferente do “mestiço” Nelore. Essa pureza garante, entre outras coisas, um tipo raro de gordura que fica entranhada na carne e que lembra uma pedra de mármore. Para alcançar essa magnificência, existem países que levam o cuidado com o animal tão a sério que, no próprio Japão, o gado bebe cerveja, recebe massagem e passa por sessões de relaxamento ao som de música clássica.
Todo esse cuidado faz parte do peculiar mundo de carnes premium que vem atraindo um número cada vez maior de adeptos no Brasil. Evidentemente, esses produtos não são encontrados em qualquer açougue. A iguaria exige um manejo e um armazenamento especiais para preservar a gordura que fica na carne e derrete com o calor, conferindo paladar diferenciado. Estima-se que o mercado de carnes premium represente cerca de 3% da fatia mundial do mercado. No Brasil, são consumidas cerca de 200 mil toneladas/ano (entre importações e produção nacional) de carnes especiais, com um crescimento de 20% ao ano na última década. “Embora esse mercado não seja novo no País, verificamos que o comércio de carnes premium se intensificou nos últimos dez anos”, afirma Leonardo Leite Leocadio, diretor de marketing da Sociedade da Carne, uma espécie de clube de corte para carnes nobres. Segundo o especialista, houve um avanço substancial nos últimos cinco anos, quando as pessoas passaram a comprar as carnes premium para consumir em casa. Até então, esses alimentos eram servidos em restaurantes.
Oportunidades
Com essa mudança de comportamento, empreendedores passaram a abrir pequenos e sofisticados frigoríficos que mais se parecem butiques. “Existem 20 frigoríficos com as características que defendemos na Sociedade, caso de empresas como VPJ Alimentos e Intermezzo Gourmet”, afirma Leocadio. São Paulo tem a maior concentração desses frigoríficos: são dez ao todo. Com o crescimento do segmento, a indústria também se movimentou. A JBS, por exemplo, lançou uma linha de produtos “premiunizados” denominada 1953 (uma referência ao ano de fundação da empresa) e que conta com 14 cortes, tais como o baby beef, ancho, chorizo, maminha, bombom de alcatra, steak de picanha e coração de paleta. “Hoje, esse mercado representa 3% das vendas globais de carne da JBS. Isso está diretamente relacionado ao crescimento do consumo dos Millennials e ao aumento da classe média no mundo, especialmente na Ásia”, explica André Nogueira, presidente da JBS USA, braço americano do Grupo responsável por quase 70% dos US$ 55 bilhões de faturamento no ano passado.
A ideia desses frigoríficos é fornecer as carnes premium a restaurantes requintados e a grandes redes como o McDonald’s, que chegou a oferecer no cardápio um hambúrguer gourmet. Na Austrália, a empresa de fast-food foi mais longe e passou a servir um lanche com a tal carne Wagyu por US$ 8,33.
Um belo corte
A partir de uma única carcaça, tradicionalmente se faziam pouco mais de 50 cortes, mas com o avanço do manuseio da carne (e a sua respectiva premiunização) tem sido possível desmistificar algumas lendas, como a associação da parte dianteira do boi à carne de segunda categoria. “Não existe carne de primeira e de segunda; o que existe é boi de qualidade e boi sem qualidade”, dizia o saudoso Marcos Guardabassi (ou apenas Marcos Bassi), um dos maiores especialistas no assunto. Foi ele quem fundou o Templo da Carne e criou, nos açougues, cortes como bombom, fraldinha e steak.
Bassi e outros especialistas ajudaram a romper com o preconceito relacionado a carnes de menor valor agregado e, de certa forma, “descobriram” novos cortes. É o caso da carne localizada no ombro do boi, perto do acém (que alguns acham que só serve para carne moída) e que tem maciez próxima à do filé-mignon. “A parte dianteira é o que há de mais novo em carne premium. Um exemplo é o flat iron steak, uma carne extraída da paleta (ou ombro) e que possui um dos cortes mais macios do boi”, explica.
Essa preocupação também tem motivado a própria JBS a refletir sobre o manuseio da carne sob dois aspectos: o corte correto da carne e o desperdício feito pelos supermercados — que pode chegar a 20% do total do boi. Pensando nisso, a empresa lançou o serviço Açougue Nota 10, um programa voltado para a capacitação dos estabelecimentos para oferecer o serviço. Hoje, esse serviço está disponível em mais de 700 lugares no Brasil. “No nosso treinamento, ensinamos técnicas de cortes da carne, o que inclui a identificação das carnes nobres. Há uma demanda do consumidor pela gourmetização do produto no balcão de atendimento à qual estamos atentos”, diz Rodrigo Gagliardi, gerente-executivo de vendas da JBS Carnes.
Customização
Em tempos de transformação digital e do uso de dados para identificar gostos cada vez mais específicos (quase íntimos) de cada consumidor, há um processo de customização em andamento, e a carne não é exceção. A proteína animal está passando por um processo de “descomoditização”, algo que lembra o recente movimento da “do it yourself” que ocorreu com a cerveja. Não à toa, a Amazon adquiriu a Whole Foods não apenas pensando em entrar no varejo físico de alimentos, mas também para expandir seu negócio de venda de alimentos, que no último ano foi de US$ 4,7 bilhões. À primeira vista, esse valor parece razoável para o mundo dos negócios, mas significa apenas 1,8% do faturamento anual da empresa de Seattle.
No entanto, segundo especialistas americanos, o que estava em jogo na negociação foi o bom relacionamento da Whole Foods com o seu consumidor, que custou à Amazon US$ 13,7 bilhões. Dessa forma, a empresa pode transportar essa confiança para o e-commerce, rompendo a última barreira das vendas pela internet: os alimentos frescos.
Enquanto esse elo não se fortalece, há interessantes iniciativas que unem os mundos digital e físico quando o assunto é venda de carne. Um exemplo é o trabalho feito pela Porter Road, uma espécie de startup do setor de açougue e que, de certa forma, vai na contramão ao movimento de industrialização de corte e manipulação de proteína.
A história da empresa, inclusive, lembra o roteiro de muitas startups que surgiram no Vale do Silício. Um dia, dois amigos, os cofundadores James Peisker e Chris Carter, se conheceram em um restaurante de Nashville, nos Estados Unidos, e notaram que a carne pedida não condizia com a promessa no cardápio. Juntos, os dois experts em carne passaram a visitar alguns restaurantes e açougues. Ao longo desse tour da proteína, eles notaram um gargalo importante: poucos lugares sabiam manusear as peças. “Fizemos uma longa pesquisa e notamos um gap nesse setor. Não havia onde recorrer a carne e corte local de alta qualidade”, afirma Peisker.
Essa percepção virou um negócio especializado na curadoria da carne para o consumidor final. Peisker lembra que o problema do corte foi imediatamente resolvido pela empresa, mas faltava o essencial: a escolha de uma carne de qualidade. Dessa forma, a dupla também se dedicou à criação do gado e partiu em busca de pequenas fazendas que utilizavam o mesmo processo. Em 2017, outro passo corajoso transportou a Porter Road para o mundo on-line.
“Somos capazes de supervisionar todas as etapas do processo, desde o check-in de nossos agricultores até o corte de pedidos personalizados. O consumidor quer a customização e, de alguma maneira, isso vai impactar o mercado”, acredita Peisker. Afinal, é inegável que o consumidor está com fome por novidades e as startups podem ser uma saída para pratos customizados.