O momento brasileiro está longe de parecer fácil. Quem esteve conectado em qualquer canal de informação nos últimos dias certamente ficou chocado com o estupro coletivo realizado no Rio de Janeiro. A internet se mobilizou – de uma forma que só a internet sabe fazer – para deixar bem claro que, em qualquer situação, a culpa do estupro é sempre do estuprador e nunca da vítima.
As redes sociais convidaram a sociedade para um debate sobre o machismo, a opressão feminina, o medo que as mulheres sentem quando saem às ruas. Esses são fatos que, antes da comunicação livre e espontânea por meio das novas mídias tinham pouco ou nenhum espaço. A questão é: mesmo com tantas informações, temos mais conhecimento?
É um questionamento pertinente que envolve principalmente o comportamento das gerações mais jovens, que estão sempre conectadas. Recentemente, a revista Consumidor Moderno apresentou uma hipótese de divisão de gerações que existem no Brasil. Assim, foram abordadas algumas características dos Millennials e jovens da geração Z.
Uma das entrevistadas sobre esse tema foi a psicanalista Maria Lucia Homem, que é referência na área em que atua. Abaixo, confira alguns insights obtidos na entrevista.
Consumidor Moderno – Qual é o efeito realizado pela tecnologia nas pessoas?
Maria Lúcia Homem – Desde sempre a tecnologia (ou a técnica) altera a relação do sujeito com o mundo, porque, além de ser um objeto, é um mediador de objetos. Então, ela vem ganhando cada vez mais força porque é um interobjeto e, para além dessa relação sujeito-coisas (que demanda energia psíquica e podemos chamar de libido), ela é uma janela para ver objetos e o mundo. E é interessante ter uma janela através da qual olhar o mundo, as pessoas, as coisas. Isso, por si só, já é fascinante.
CM – Há algum comparativo que possa ser feito nesse caso?
MLH – No século XIX, quando começou a surgir o trem, houve uma grande transformação mental. A massa das pessoas nunca havia olhado o mundo tão rapidamente. Mesmo, hoje, se você vai viajar de trem na Europa e no Japão, o olho humano não consegue captar o que está perto, só vê cidadezinhas passando ao longe. Então, a navegação on-line é como um passeio de carro ou trem: você pode ver tudo, mas sempre à distância.
CM – Quais são os possíveis efeitos dentro dessa situação?
MLH – A hipermetropia é um exemplo de efeito gerado pela possibilidade de olhar o mundo através da janela que é a tecnologia. Você não enxerga nada que está perto. Vê muito rápido, então, tem uma visão generalizada. Enxerga-se muito longe, vê-se tudo, sabe-se tudo, mas de forma superficial. É uma geração informada apenas entre aspas, com muitos bits de informação, e um conhecimento rico em extensão. Talvez um jovem da geração Z tenha uma extensão temática muito ampla. Sem dúvidas, uma criança de dez anos, no século VIII, não tinha, em seus olhos, a capacidade de apreender imagens como as crianças urbanas de hoje. Se forem feitas perguntas exatas para essa população que só vive conectada, ela não saberá se aprofundar.
CM – Por que existe esse efeito no aprendizado?
MLH – Qualquer filosofo da educação explica que é preciso haver tempo para o aprendizado: apreender demanda tempo. A informação é recebida, assimilada com temporalidade e acomodada. O dado é acomodado em uma rede pronta que, por sua vez, é modificada. Nesse processo, há até mesmo uma transformação neurológica. Mas, para haver mudanças efetivas, é preciso muito impulso elétrico. Observo que os alunos, acima dos vinte anos, parecem ter ouvido falar de tudo mas, quando insistimos no conhecimento, descobrimos que ele não é aprofundado. Essa superficialização e navegação continua implicam também em uma perda de referenciais básicos da razão, como o espaço-tempo.
CM – Dentro desse contexto, como acontece o aprendizado?
MLH – A imagem vivida por esse indivíduo conectado é a de uma superfície. O olho vai passando pela paisagem e essa prática é prazerosa. Uma derivação psíquica disso é como se fosse um prazer difuso e leve. Não é o prazer do encontro afetivo, emotivo, sexual ou epistemológico, de conhecimento. É outra lógica de relação radical com a experiência – com os outros, com seu corpo, com você mesmo, com o passado, com uma história. E as gerações mais velhas começam a entrar nesse fluxo de forma inconsciente. E como você apreende? Você tem, talvez, intensidades emocionais. Há uma relação emotiva, porque a cognição é fragilizada. Há picos emotivos, mas eles são frágeis porque logo passou para outra janelinha do grande passeio. Ao mesmo tempo em que há esse passeio, o sujeito está parado. Há acumulação de trabalho, dinheiro, há adoecimento, estatísticas de depressão e ansiedade.
CM – Sob a ótica da psicanálise, quais são os efeitos desse contexto?
MLH – Algumas transformações psíquicas causam sofrimento. Então, essa hipernavegação de que estamos falando tem relação direta com a falta de atenção, de foco, de cognição, de raciocínio abstrato. O indivíduo assiste a séries, filmes, música, mas não entende como movimentos e escolas artísticas se aplicam a essas obras. A filiação de todos os lugares se rompe: são só átomos, elementos. A gênese, a filiação, a história e a genética no sentido mais radical se quebram. Isso causa angústia, ansiedade, porque você não consegue ter uma base de apoio.
CM – E quais são os reflexos disso?
MLH – Parte da ansiedade existe por causa desse fluxo constante e é impossível que haja tranquilidade, porque não se vê horizonte. O indivíduo só está nadando, não sabe aonde vai chegar, perde o norte. Não há começo nem chegada, só o imperativo de viagem. Exemplo disso são as chamadas publicitárias: “Have fun”, “Smile”, “Keep walking”, “Just do it”. Usando anglicismos, adotamos, não por acaso, uma cultura que não é a nossa e que tem um foco puritano, em que a ética do trabalho e da produtividade é soberana. Não existem mais grandes questões. Quando, em breves lapsos de consciência, alguma coisa é compreendida, há um sentimento de angústia, tristeza, depressão, frustração.
CM – E como a psicanálise pode colaborar com essa batalha?
MLH – Na clínica, há um trabalho para entender por que você está mal e qual é o seu lugar nesse jogo neurotizante. Em principio, como estamos fragilizados no sentido psíquicos e com formações muito simples e arcaicas, oscilamos em uma lógica de quase recompensa simplista, não muito humanizada, que oscila entre prazer e desprazer. Quando não há prazer, há altos ideais e frustração, e os ideais envolvem a lógica consumista e de trabalho. Ou seja, há um norte difuso, compartilhado pela massa, que é o do sucesso. Esse norte é abstrato e tem algo a ver com dinheiro, com bens de consumo, com a indústria do luxo.
CM – Como esse norte massificado reflete no comportamento?
MLH – Esse objetivo é compartilhado. Talvez você nem quisesse tanto isso. O desejo humano é muito complexo, um ideal não se aplica para todos. Essa é a graça da vida. A criatividade é infinita: as pessoas tem taras, loucuras, perversão. O fato é que o humano é muito especifico em seu desejo. Como podemos viver em uma cultura que padroniza isso? Ao mesmo tempo em que você cria uma geração imbuída de uma lógica de que existe algo a espera, planta também a ideia de que é preciso ter prazer, de que o indivíduo não pode ser frustrado.
CM – Isso tem relação com empoderamento?
MLH – Todos os discursos de empoderamento, de prazer, de aprendizado por meio do lúdico, estão ligados a isso. Mas, não fazem tanto sentido. Afinal, representam uma recusa absoluta do desprazer, do trágico, da falta, do vazio. Há uma autodefesa maníaca e absoluta na nossa cultura, mas o mundo não é isso. Essa é uma carapaça tão frágil que chega a ser patética. Ao mesmo tempo, você vê um discurso e um desejo em nome do prazer, de uma alegria e felicidade vazias. É um nível de sofrimento muito profundo em uma estrutura muito arcaica, que não tem nem recursos para lidar com o tamanho do buraco em que caiu.