O SXSW 2018 terminou. Como já falamos algumas vezes, é um dos eventos mais legais, descolados, divertidos e inspiradores do mundo. Uma combinação quase caótica de ideias fora da caixa, inovação serial, música alta – rock em diversas vertentes é o gênero preferido -, cultura popular, tecnologia, cinema e liberdade que encanta, surpreende e causa estranhamento em dezenas de milhares de pessoas anualmente.
Por diversas razões, o SXSW é um evento inclassificável e rotulá-lo é um exercício inútil quando não simplesmente tolo. Sua fórmula não se copia – e há tentativas mambembes de reproduzir seu estilo em outras localidades, inclusive em São Paulo. E não se copia porque Austin é a cidade ideal e perfeita para receber o evento. Uma cidade com espírito inovador, uma população fanaticamente engajada em torno do SXSW, que retrata a visão de mundo desse microcosmo, baseado em liberdade de pensamento, inclusão, incentivo às artes, à experimentação, com tolerância, diversidade e ambição. É praticamente impossível reproduzir esse ambiente – curiosamente encravado no meio do Texas – estado com forte propensão à uma cultura mais conservadora, ainda que fortemente liberal na economia.
Mas além do ambiente, o SXSW não se copia porque ele não foi pensado ou criado como um empreendimento de negócios. É antes um empreendimento social, que consegue reunir um time de centenas de voluntários engajados pela causa de fomentar ideias e profissionais da economia criativa capazes de construir um mundo melhor por meio de ações de alto impacto. E por ações entenda-se políticas públicas, privadas, educativas, culturais, artísticas, empreendedoras, tanto faz. O foco é poder fazer do mundo um lugar melhor. E ter um fórum no qual o 1% e representantes dos outros 99% se reúnem de forma igualitária para pensar, refletir e até trabalharem juntos é notável.
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E então temos a seguinte premissa: o SXSW é um evento ainda indomável, com um espírito rock’n’roll, combativo, juvenil, estridente, capaz de reunir a nata da juventude mundial em torno de ideias e estímulos variados e dali provocar ondas que repercutem por meses e anos a fio. Grandes negócios já foram divulgados ali. Grandes startups já fizeram suas primeiras apresentações ali. Grandes ideias e provocações foram divulgadas nos seus muitos palcos e muita gente sensacional já palestrou e chamou atenção nos dias 10 dias do começo de março que integram o calendário do evento.
Bom, agora como pensar o Brasil no meio desse contexto? Por que o país parece tão deslocado do mundo toda vez que o vemos à distância, a partir da lente do festival? Muitas hipóteses podem ser levantadas, nenhuma positiva. E arrisco uma delas aqui: nossa suposição na crença de que somos um país peculiar, para o qual as experiências do mundo não têm validade ou serão “tropicalizadas” pelo nosso liquidificador sócio-político-econômico-cultural. O Brasil seria uma esponja capaz de viver em outra rotação, um pouco à margem do mundo, onde suas escolhas refletiriam um orgulho torto, capaz de reprocessar e ressignificar qualquer ideia. Em um resumo simples: o Brasil cria jabuticabas.
Nosso sistema político é uma jabuticaba, no qual o presidencialismo convive com 30 partidos que não são partidos, mas ajuntamentos de interesses paroquiais, onde elegemos congressistas por meio de um sistema amalucado em que um deputado com 300 votos pode ser eleito na carona de um deputado de outro partido que teve centenas de milhares de votos. O Brasil tem uma jabuticaba judiciária, onde juízes arvoram-se o direito de reinterpretar leis ao seu bel-prazer e gozam de auxílios-moradias mesmo quando têm moradia. O Brasil têm jabuticabas econômicas, com uma propensão ao populismo e ao assistencialismo que normalmente nos leva à ruína, mas que sempre deixa saudades.
O Brasil têm jabuticabas corporativas, com muita vontade de pedir favores em Brasília em vez de competir por clientes. O Brasil têm jabuticabas financeiras com juntos estratosféricos de crédito baseados em um amontoado apoplético de desculpas enquanto a inflação fica na casa dos 3,5% ao ano. E o Brasil têm jabuticabas ideológicas, nas quais todas as minorias dignas de respeito e apoio fazem tal apologia de si mesmas e de sua situação que se tornam simplesmente oprimidas de carteirinha, o que motiva grupelhos aproveitadores a reivindicarem para si os holofotes que deveriam estar sobre quem realmente precisa.
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Sob essa ótica, toda a visão, as ideias, o entusiasmo que o SXSW provoca nos milhares de brasileiros que seguem para Austin anualmente perdem-se diante da nossa incapacidade de racionalizar de modo consistente sobre nosso lugar no mundo e nossas prioridades. A desigualdade, a transformação digital, a ascensão das Inteligências Artificiais e seu impacto no trabalho humano, o surgimento de empresas disruptivas e uma propensão a quebrar e reescrever regras que reduzam a burocracia, a fricção, o poder desmedido de governos e corporações, a consciência ecológica e a busca por tolerância e igualdade de gêneros e oportunidades são parte de uma nova agenda transgeracional em nível global. No entanto, essas mesmas ideias ou não fazem parte do nosso debate ou então recebem um tratamento no qual são apropriadas por agrupamentos barulhentos que as desidratam de seu propósito e de sua capacidade de engajar o público e extrapolar nichos específicos.
O que podemos aprender com o SXSW é justamente compreender o posicionamento real da grande agenda global e em que nível e prazo o Brasil poderá acompanhar e ser protagonista dessa agenda. Não resolveremos nenhum dos nosso problemas, impasses e dilemas enquanto damos luz e força às nossas jabuticabas e aqueles que as cultuam.
A elite do pensamento nacional – empreendedores, pesquisadores, ativistas, lideranças corporativas, bons políticos (não se engane, eles existem), profissionais da mídia precisam dar um basta à evocação de pensamentos rasos e a essa ideia amalucada de que “o Brasil é diferente”. Enquanto acreditarmos que nosso futuro não tem relação com o que acontece no mundo continuaremos a olhar para festivais como o SXSW de modo fetichista, idealizando o que poderíamos ser à luz do que não queremos ser.