Estamos diante de uma situação inédita – é a primeira vez em que temos uma oportunidade igualmente distribuída em um mundo global. A possibilidade de contágio não distingue sexo, raça, religião, ou classe social, e se aproveita da globalização para escancarar sua própria falácia, a de uma promessa de igualdade jamais cumprida.
Compartilhamos as mesmas restrições de mobilidade e as sensações de dúvida, medo e insegurança sobre o amanhã. Ninguém sabe quando, e/ou como voltaremos.
Especulam-se que voltaremos melhores, mais fortes. Não para aqueles que perderam pessoas queridas, certamente. Talvez para aqueles que estejam conseguindo criar novas rotinas, rompendo com a limitação das variáveis espaço-tempo. Dizem que voltaremos mais humanos, mais solidários. Nós, humanos, temos mesmo esta característica de nos unir diante dos momentos difíceis, e de nos distanciar na abundância. É uma particularidade própria do instinto de sobrevivência – diante da fragilidade me aproximo de quem possa me ajudar, salvar.
Na abundância me sinto forte o suficiente para me bastar, não preciso do outro. É aí quando nos sentimos maiúsculos – uma sensação tão falsa quanto passageira, que só percebemos quando somos forçados a ajustar o nosso espelho. Ao reflexo de uma racionalidade maiúscula teórica se soma uma vulnerabilidade ímpar concreta. Diante da pequenez agora estampada, apelamos para algo maior que nos salve, à espera de um milagre (algumas culturas mais do que outras, é certo).
Meu pai sempre me dizia: “nos damos importância demais.” Temos que reconhecer a nossa condição minúscula, começando por questionar o poder que nos autooutorgamos pelo simples fato de sermos humanos, e de termos uma – limitada – racionalidade. Este ser invisível que nos aprisiona coloca em dúvida a nossa relevância enquanto espécie.
A natureza aflora à causa da nossa ausência. O ar está mais limpo, os animais caminham livremente pelas praias, lagos e até pelas cidades. É um manifesto à nossa pequeneza, declarado por um planeta que chegou ao seu limite, e que diz claramente não precisar de nós – somos nós quem dependemos dele. Nós invertemos a lógica e agora temos que rever o nosso papel para sermos mais significantes na presença, do que na ausência.
Historiadores afirmam que só agora chegamos ao fim do século vinte. O que determina o fim do século, dizem, não é o tempo, mas sim a nossa experiência humana. O século passado só começou após o fim da primeira guerra mundial, em 1918. É a representação de algum limite que sinaliza o fim de algo, e marca o início de outro. E este limite marca que somos todos mais vulneráveis do que acreditávamos. Que a nossa saúde é frágil e, ao mesmo tempo, a nossa maior riqueza. E que o preço a pagar pelo crescimento a qualquer custo está se mostrando bastante caro.
O indivíduo não é um ser isolado do mundo. Pertencemos a uma rica e complexa rede com diferentes tipos de interações que se estabelecem de forma interdependente. Em grego, há uma palavra que classifica aquela pessoa que abre mão de se relacionar, de viver em comunidade – ´idiot.´ Agimos como idiotas quando nos sentimos mais significantes do que os outros habitantes deste planeta, ignorando a interdependência que nos une. Pena só nos
darmos conta disso ao sermos isolados forçadamente. Que este período de reclusão sirva para que o olhar individual (este reflexo minúsculo diante do espelho), ceda importância ao maiúsculo coletivo. Isso implica em sermos mais colaboradores, cocriadores e cooperativos, e menos egoístas.
Um primeiro passo poderia ser o de exercer a nossa atenção aos sinais. Há um claro aprendizado por trás dos países que estão conseguindo responder mais eficazmente à pandemia, por exemplo. Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan priorizaram o bem estar coletivo em detrimento da autonomia pessoal. A nossa volta exigirá que sejamos mais significantes coletivamente, sendo mais insignificantes individualmente.
A crise que veremos adiante é o preço de todo este crescimento cego a que fomos submetidos, ou que impulsionamos durante anos. A expansão econômica não é sustentável indefinidamente. Temos que entender a nossa significância em tudo o que está acontecendo e nos recolher humildemente a nossa insignificância. Se entendermos os recursos como escassos e a necessidade de uma continuidade, talvez possamos desenvolver uma intenção correta. É a hora de sair do pensamento mágico passivo à espera do milagre, para repensar o nosso papel com uma postura mais ativa. Em francês, a palavra ´sorte´ significa ´chance´, que implica em ação. É nos tornarmos participativos, aproveitando essa imersão introspectiva forçada como uma chance que nos está sendo dada, ao invés da passividade que não muda o objeto da reclamação.
Se a única certeza é a crise iminente, e todo o resto é incerto, temos uma oportunidade válida nas mãos de criar o futuro que desejamos. De todas as espécies, somos a única capaz de imaginar, de criar cenários. Esta capacidade não invalida a nossa insignificância individual, se a compararmos com a de uma planta que transforma gás carbônico em oxigênio. Mas nos coloca em lugar de esperança se direcionarmos a significância coletiva em direção a relações
mais equilibradas, demonstrando mais respeito à interdependência que existe em tudo ao nosso redor. Há várias propostas neste sentido, e destaco a da “renegada” economista inglesa (como ela mesma se define), Kate Raworth, que sugere a troca do verbo ´crescer´por ´prosperar´. Parecem sinônimos, mas há uma sutil e importante diferença que ela explica no vídeo.
“A economia vigente determina o crescimento infinito do PIB como obrigatório, mas nada na natureza cresce para sempre. Hoje vemos economias obrigadas a crescer, mesmo que elas não nos façam prosperar. O que precisamos é de economias que nos façam prosperar, independentemente do seu crescimento.”
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*Por Graziela Di Giorgi, CGO e diretora Brasil da SCOPEN.
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