“O jogo amoroso tem muito da entrelinha, daquilo que não é dito”, me disse, há muitos anos, um publicitário que viria a se tornar referencial em nosso País. Eu contava pouco mais de 20 anos e, com meu grupo de trabalho na Universidade, pesquisava a relação do sexo com a propaganda.
Naquela época, vivíamos uma espécie de desbunde, com o uso de artifícios eróticos e apelos sensuais para conquistar a imaginação e a preferência dos consumidores. A AIDS fazia estragos, mas o erotismo e a sensualidade explodiam nas telas de cinema e TV e a internet era coisa de ficção científica.
Para aquela geração, o “jogo amoroso” era uma iniciação da vida adulta, ansiada e praticada com gosto. Tinha muito de autoafirmação e definição de identidade.
Os tempos mudam, os comportamentos evoluem e se modificam e, atualmente, aquele jogo amoroso ganhou novas regras. Ou podemos dizer que se trata de outro jogo. Os jovens da Geração Z, em sua busca por significados e pelo exercício de identidades e de novos padrões com o que define uma sociedade – trabalho, gênero, cultura, diversão, subjetividade – também experimentam um novo olhar para o afeto, o carinho e os relacionamentos. Ao que parece, o intimismo e o resguardo com os relacionamentos pessoais criou uma espécie de “dor”. A dor de se relacionar emocionalmente com alguém.
Somos as testemunhas de uma mudança substancial de modelo de vida e construção social. Isso porque a Inteligência Artificial, associada a um estilo de vida digital, tem potencial para desconstruir nossos modelos mentais preconcebidos de atuação social, da política ao lazer, da educação à carreira profissional, das amizades à satisfação sexual.
Aceleração sem reflexão
Outro efeito, mais discutido e repercutido, é a aceleração da vida. Tudo é rápido, vertiginoso, sem pausa, intenso. Acontecimentos, informações, streaming, projetos, pessoas, tudo é fluxo, corrente e onda. O tempo de reflexão inexiste e a liberação de dopamina em nossas mentes torna-se um vício. O prazer se deslocou do afeto, do carinho e do convívio para a vida em fluxo, em imersão e scroll infinito.
Logo, o relacionamento afetivo para os mais jovens, inundados pela dopamina liberada pelos gatilhos digitais, torna-se penoso. Afeto, carinho, convívio, toque e o jogo amoroso exigem ponderação, temperança, reflexão, aprendizado. É um balanço que não se ajusta exatamente ao rolar dos dedos buscando o próximo Story.
Epidemia de solidão
Dados da CB Insights são inequívocos: os momentos de solidão dos jovens americanos superam 8 horas semanais, enquanto o tempo de convívio com amigos/as e companheiros/as caiu para menos 4 a 5 horas semanais respectivamente, o que equivale a dizer que passam mais de uma semana sem convívio social efetivo!
Startups dedicadas a criar “namoradas virtuais” constroem seus planos de negócio para atingir homens solitários que não praticam sexo. Ao mesmo tempo o “swipe” no aplicativo Tinder traz cada vez menos engajamento e encontros efetivos. Estudo da Universidade de Washington aponta um “apagão sexual” entre jovens de até 25 anos. Esse estudo de 2022 encontra correspondência em outro, realizado no Brasil, denominado “Mosaico 2.0”, que revela desinteresse por sexo nas telas e na vida real. Em resumo, 28% dos homens e 18% das mulheres abaixo dos 30 passam até um ano ou mais sem atividade sexual.
Epidemia de solidão, apagão sexual, amigos virtuais são fenômenos que escapam à compreensão de gerações anteriores. Rita Lee, saudosa roqueira, cantava nos anos 70: “Papai me empresa o carro, tô precisando dele pra levar minha garota ao cinema… só meia hora de sarro no seu carro com meu bem”. Vejam o contraste: nem os jovens têm disposição para “tirar um sarro” com quem quer que seja, nem têm disposição para pegar um carro… (melhor pedir um Uber).
Uma boa hipótese para esse desapego em relação ao formato mais tradicional do “jogo amoroso”, para além da vida mergulhada nas telas, tem a ver com a busca desenfreada por identidades e pertencimento. O fluxo de informação e proselitismo em torno de autoafirmação e autoexpressão tornou as referências emocionais das gerações passadas um fardo insustentável. Significa assumir papéis sociais, afetivos e emocionais que não necessariamente fazem sentido diante da visão de mundo filtrada por algoritmos e vieses exacerbados pela vida nas telas. A grande exaustão, tendência mapeada pela CX Brain, em 2023, provocada pela vida acelerada, pela ansiedade extrema e a perda momentânea de dopamina, podem ser vetores dessa falta de vontade de buscar apoio pessoal, convivência e parceria. A paixão machuca, o outro pensa diferente, é penoso e árduo ter de renunciar a algum momento, alguma ideia e alguma crença. Tão mais fácil rolar a tela do celular, não?
Paradoxos emocionais
É certo que muitas pesquisas e novos dados irão trazer mais luz a esses novos comportamentos, de tal modo que consigamos entender melhor quão profunda é essa renúncia ao jogo amoroso. É inegável, no entanto, que estamos diante de um momento curioso nas relações pessoais. Defendemos cada palmo do que nos torna humanos diante das ameaças originadas pelas Inteligências Artificiais, boa parte delas infundadas. Ao mesmo tempo, assistimos inertes à rendição da nossa voluntariedade, assistindo passivamente o escorrer dos dedos por imagens, filmetes e memes.
Será que o comportamento um tanto mais avesso da Geração Z aos relacionamentos é uma excentricidade momentânea, assim como o “grandpa look” (a inclinação de seguir uma moda inspirada e decalcada dos avós)? O tempo e novas pesquisas irão dizer.
De nosso lado, como pessoas que têm a responsabilidade de mentorar, desenvolver e liberar o potencial desses jovens, temos de repensar nossas próprias habilidades relacionais. Ao invés de criticar radicalmente as posturas e hábitos de pessoas ainda em busca da melhor parte de si mesmos, é aconselhável ter disposição para criar os laços de confiança que possam mostrar o valor do convívio, da emoção e da proximidade.