O ser humano é um universo complexo baseado em emoções, sensações, hormônios e ligações químicas. Pode parecer abstrato, mas a mente tem uma ligação muito maior com o corpo físico do que muitos de nós imaginamos – e isso, muitas vezes, é pouco valorizado na sociedade contemporânea. Uma recente pesquisa analisa uma emoção que está intrinsecamente ligada a todo o comportamento humano: o medo. O estudo “Os medos que pairam sobre nós”, produzido pela FCB, dá um panorama da complexidade da mente humana, principalmente ao levar em consideração o mundo digital.
Os resultados expõe como a mente pode nos assustar. O maior medo de todas as pessoas é o medo da morte. Para as pessoas com filhos, ele é transferido para a morte ou doença dos filhos (atinge 77% dos entrevistados). O segundo maior medo é de sofrer violência (física ou emocional), com 66% das menções. Também temos muito medo de fracassar (55%) e de enfrentar o novo (23%). Esses são medos “antigos”.
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Atualmente, também temos o que a pesquisa define como o “espírito do tempo urbano-digital”. Surgiram medos ligados à hiperexposição nas redes sociais, que levantam inseguranças relacionadas ao julgamento dos outros, à necessidade de parecer feliz o tempo todo. Sentimentos de rejeição e fracasso nunca vieram à tona de forma tão intensa. Samuel Souza, psicobiofísico e professor do curso de psicobiofísica da PUC-SP, explica que o mundo digital apenas tornou complexo o que já não era simples de se entender – o comportamento humano e seus medos. Em sua área, o especialista analisa as conexões e influencias da psique sobre nosso sistema biológico e físico, entendendo sua ação conjunta na consciência humana.
Em entrevista exclusiva à Consumidor Moderno, Souza detalha a ligação do medo humano com a vida em sociedade. Confira:
CM – Qual é a importância de entender o medo humano e os fatores ligados a ele na sociedade?
Na realidade, o medo é uma emoção. Toda emoção aciona diversos tipos de hábitos no ser humano. As emoções são turbulentas e existe uma diferença entre o processo da emoção e o processo do sentimento. O sentimento é sereno, é uma emoção que já foi vivenciada muitas vezes e por isso adicionamos razão e bom senso a ela, passamos a entender o fluxo biológico e corporal ligado a tal emoção e conseguimos lidar com ela.
Ao começar a vivenciar uma emoção, ela ainda é uma sensação turbulenta, e por isso o indivíduo pode dar vazão a situações de raiva, medo ou impulsividade. Pelo fato de não saber lidar com suas emoções, frustrações, acontecimentos mal sucedidos ou com seu medo, as pessoas se isolam, não sabem dar fluxo a tudo isso. Estudar as emoções é compreender esses fatores de tal forma que essas intenções ganhem um fluxo natural para que as pessoas saibam compreender mais a si mesmas, entender mais sobre seu processo biológico interno, adicionando razão a esses fluxos emocionais. Então todos esses momentos e acontecimentos internos vão sendo modificados.
CM- O medo também está ligado ao nosso instinto de sobrevivência então podemos dizer que, em certo nível, ele é algo natural, certo? Em que momento o medo deixa de ser saudável?
O medo que é considerado absoluto é o medo da morte. Todo mundo sabe que um dia vai acontecer e por isso todos lutam para fazer sua “manutenção” e ter o máximo de vida possível. A prudência, por exemplo, nem sempre está relacionada ao medo, mas contém em si um pequeno percentual de medo ligado a cuidado. O medo não desencadeia descontroles através da prudência, é um medo que se transforma em algo sadio, torna-se disciplina.
O medo do erro também é um aspecto de ação do ser humano. Ele pode trazer prudência, mas também levar também a uma timidez muito grande, essa é a diferença. A timidez é uma consequência do orgulho (que é uma emoção que produz medos) – a pessoa muito orgulhosa é tímida porque não quer que aja erros, então o medo leva a uma inação. Isso pode fazer o indivíduo se isolar: as pessoas cada vez mais têm medo de se relacionar. De alguma forma é uma preocupação com o mundo social.
CM – O medo faz parte do ser humano e o estudo mostra que a era digital intensificou muitos medos, como o medo de ser rejeitado ou de não ser aceito exatamente como é. Qual é o gatilho que o mundo digital traz para intensificar os medos humanos de tal forma?
Acredito que isso ocorre porque o mundo digital é um mundo de imaginação. Criou-se uma estrutura virtual extremamente intensa, não é um compartilhamento real, simples. A complexidade desse compartilhamento virtual aumenta tanto o número de variáveis mentais que as pessoas criam estruturas de comportamento que nunca existiram – e as vezes não existem. E isso gasta um tempo enorme, ao mesmo tempo faz com que o tempo real diminua de valor. Essa é uma fase de transição que o ser humano está vivendo. A partir de novos comportamentos, existem novas frustrações que vão aparecendo e terão que ser resolvidas.
CM – Na sociedade conectada, é possível que uma pessoa consiga fugir desses clichês – de ser feliz o tempo todo, postar uma vida perfeita em fotos e posts etc?
Nas redes, existe uma felicidade tão isolada de cada um que as pessoas acabam sendo infelizes. Elas postam aquilo que elas gostariam que fosse a felicidade para elas, mas na realidade não é – porque está faltando algo. A pessoa faz uma exposição da possível felicidade acreditando que o outro vai achar que é real e vai invejar aquilo. O mundo da tecnologia inventa formas de você lidar com as próprias dificuldades, mas ao mesmo tempo não ajuda os processos de relacionamento em si.
CM – Tenho a impressão de que muitos desses medos ligados ao exterior são, na prática, fugas do ser humano do seu próprio eu. O estudo mostra que a grande maioria dos medos são ligados a rejeição. Somos uma sociedade de indivíduos inseguros e desconectados de si mesmo? É possível reverter esse quadro?
O medo é criado interiormente porque faltam coisas que são essenciais. As pessoas não se confrontam, acham que o problema está fora. É muito difícil que uma pessoa admita as próprias dificuldades, ela acha que são os outros que têm problemas e criam problemas para ela. É preciso conhecer-se a si mesmo. E buscar esses aspectos junto com os outros, aprender a receber as opiniões das outras pessoas de uma forma tranquila, serena.
Assim, o indivíduo vai identificando o que faz de melhor. Vai ser mais feliz assim porque vai ver que serve mais às pessoas, se sente mais feliz internamente, vai perdendo os medos que tinha porque está dando aquilo de melhor que tem. Outro aspecto essencial é haver cooperação entre as pessoas e não uma competição. Muito da felicidade está na assistencialidade.