Há pouco menos de um ano o ChatGPT virou o mundo da tecnologia de cabeça para baixo. As promessas e temores (sempre exagerados) associados ao surgimento de um sistema de Inteligência Artificial capaz de emular muitas das tarefas humanas pareceram, de um momento para o outro, se confirmar.
Desde então, a quantidade de matérias, especulações, opiniões, aplicações e ensaios (alguns desvairados) ganharam espaço na mídia tradicional e nas redes sociais. Em foco, as possibilidades da IA e seus impactos no trabalho, na vida pessoal, no mercado, na experiência do cliente, na tomada de decisões, no ensino, na saúde e, logicamente, no uso do dinheiro.
Estudar e buscar mais dados para projetar o futuro da IA na nossa relação com serviços financeiros e na própria evolução dos bancos tradicionais, dos neobancos, fintechs, plataformas de investimento, seguros, pagamentos, adquirência e as tendências associadas à uma nova experiência do cliente no uso do dinheiro motivaram Consumidor Moderno a acompanhar o Money20/20, em Las Vegas. O evento, anual, é o maior e mais influente encontro mundial do ecossistema monetário internacional.
Revolução em curso?
O conteúdo combina análises aprofundadas, estudos de caso e painéis de discussão com palestrantes escolhidos entre os mais influentes do mercado. Dividido em várias trilhas de conhecimento, este ano o evento dedicou muitos conteúdos à IA e seu poder disruptivo, de transformação em todo o ecossistema financeiro.
Em vários painéis, logo no primeiro dia do evento, várias questões foram debatidas com intensidade: preocupações significativas em torno da privacidade, incluindo a utilização e segurança de dados. Responsabilização do uso, necessidade contínua de educar os conselhos de administração e as equipes executivas sobre conformidade, prevenção, dados e preparação para crises, aconselhamento financeiro e de investimento, gestão e avaliação de riscos e a necessidade absoluta de controle humano foram destaques dessa edição do evento.
De início, um dos pontos mais polêmicos foi o uso de IA como consultor e analista financeiro e de investimentos. As plataformas de investimento atuais já fazem uso de algoritmos para trazer opções de investimentos adequadas ao perfil que os usuários assumem, com base nas informações compartilhadas. Mas Jessica Chen Riolfi, CEO e fundadora da Uprise, empresa que ajuda fintechs a desenvolverem negócios a partir da interação entre IAs e especialistas, afirmou, no Money20/20, que a Inteligência Artificial vai ganhar espaço porque torna o processo melhor e mais acessível.
As implicações e ambições são enormes: reduzir a desigualdade; acelerar o crescimento econômico e condicionar a estabilidade da economia. De forma mais abrangente, pode finalmente, eliminar os serviços financeiros predatórios e de baixa qualidade. Bom demais para ser verdade?
Muito longe da inclusão financeira
Segundo Jessica Chen Riolfi, a dor maior do cliente é saber quando o aconselhamento financeiro realmente importa. “Será que realmente você, como analista e consultor vai me fazer ganhar mais dinheiro do que investindo por minha conta?”, questiona, vestindo o sapato do cliente. As pessoas querem realmente poupar para a aposentadoria ou para ganhar dinheiro rapidamente?
Os estudos da Uprise mostram que uma pessoa aposentada tem de obter cerca de 15,1% ao ano de valorização nos investimentos para assegurar uma renda suficiente para substituir a renda do período laboral. E como atingir meta tão agressiva, partindo do princípio de que viver mais tempo com qualidade custa mais caro do que há cerca de uma década?
Mais ainda: como atingir objetivos tão ambiciosos quando sabemos que 1,4 bilhão de pessoas no mundo não são bancarizadas? Ou seja, mais de 20% da população global não têm acesso a serviços financeiros básicos e a grande maioria da população global precisa de ajuda e suporte. Pelo menos 64% dos clientes, bancarizados ou não, afirmam não conseguir usar qualquer serviço financeiro sem ajuda. Logo, aconselhamento financeiro real e dedicado é uma necessidade. E é nesse ponto que a introdução de tecnologia pode trazer economia de escala e ajudar realmente as pessoas a usar com mais qualidade os serviços financeiros, particularmente em um mundo complexo.
A Uprise, empresa que Jessica Chen Riolfi comanda, é especializada em oferecer planejamento de gerações, com conteúdo hiper-personalizado e baseado em abordagem empática. O objetivo é oferecer segurança e dedicação aos clientes para detectar problemas e situações que coloquem os recursos do cliente em risco. Privacidade de dados e segurança são elementos cruciais na abordagem da empresa e que ganham muita evidência, principalmente se considerarmos a pouca familiaridade que a grande maioria das pessoas têm com produtos financeiros. A questão ultrapassa em muito a educação financeira e assume uma proporção excepcional, pela carência no manuseio de operações elementares – aplicar, resgatar, entender as dimensões e riscos de um investimento é muito mais crítico.
Fraudes, riscos e controles
Outro destaque extremamente sensível é o uso de IA aplicada à fraudes. E aí, há espaço para múltiplos desdobramentos: se um sistema de IA é modelado para permitir controle de fraudes, é concebível que, ao mesmo tempo, um sistema seja desenvolvido para que novos fraudadores consigam cometer delitos mais sofisticados. Essa questão foi debatida no painel “Os bons, os feios e os sujos: aplicações reais de IA no conhecimento do cliente e prevenção à lavagem de dinheiro”. Os executivos Rick Song, CEO da Persona; Mark Goldberg, sócio da Index Ventures; Audrey Kim, venture partener da Oak HC/FT Ventures; e Jackie Brosamer, engenheira de dados e Machine Learning da Block concordaram que a Inteligência Artificial é um movimento “hype”, que produz muito ruído, o que dificulta analisar dados reais do que é pura especulação e imaginação.
O grande problema do excesso de ruído é a fadiga e o estresse que impedem boas análises. O que realmente é funcional, o que é relevante, o que é simplesmente modismo e o que é futilidade.
Segundo Jackie Brosomer, o horizonte dos próximos dois anos vai depurar o que realmente fará diferença em transações financeiras, na experiência do cliente, na resolução de problemas reais, para além da curiosidade e do uso ingênuo do potencial da IA. Por incrível que pareça, é mais indicado investir em aplicações que melhoram e potencializam negócios tradicionais do que criar inovações supostamente disruptivas. Um dos caminhos é justamente utilizar IA para reclassificar informações e reduzir fraudes. Por outro lado, fraudadores podem usar algoritmos e criar algoritmos em série que podem ser dirigidos às plataformas simultaneamente, para realmente obter alguma vantagem. Mais do que nunca, as empresas precisam montar times multidisciplinares para analisar dados e criar alarmes e guardrails que previnam fraudes e crimes.
Confirmação de identidade
Uma das grandes atividades em curso atualmente são sistemas de validação e autenticação de identidade. Como IAs podem emular personalidades, simular conversas e transparecer humanidade, de que forma os sistemas podem ser aprimorados para evitar acessos maliciosos? Por outro lado, quando um cliente real habilitar robôs e concierges digitais para trabalhar por ele, como autenticar esse cliente real por trás da camada de IA que ele utiliza?
Mark Goldberg, executivo da Index Ventures, entende que as IAs aplicadas a serviços financeiros devem facilitar e melhorar a experiência do cliente, inclusive na validação de operações. Até que ponto as empresas estão dispostas a entender que as IAs também irão tornar nossa produção de dados mais fluida, e irão multiplicar nossas habilidades, como pessoas comuns, e nos tornar mais inteligentes no uso de serviços financeiros. As IAs irão modificar as interfaces atuais, modificar como nos relacionamos com telas e impulsionar a produtividade no uso de dados de forma dramática.
Audrey Kim afirma que muitas pessoas sofrem com “hemorragia financeira”, perdem dinheiro com serviços financeiros. E os sistemas regulatórios irão impor condições severas aos grandes bancos e plataformas de comércio a tomarem medidas protetivas com urgência. Isso trará custos absurdos para esses negócios, com implicações para suas avaliações de mercado.
Os fraudadores sempre saem na frente
Diante de uma nova tecnologia, muito antes que consigamos nos dar conta, os fraudadores já estão totalmente dedicados a criar formas de nos roubar. Criminosos não seguem regulações, não se preocupam com ética e nem com os efeitos de seus atos. O número de deep fakes aumentou 5 vezes no último ano e continua sem controle.
Ainda há muito trabalho pela frente para realmente ver a IA trabalhar de forma consistente e consciente para nós, humanos. É isso vai demandar uma nova forma de colaboração.
Colaboração entre IAs e humanos
Catherine Havasi, Chief Innovation & Tech Officer da Babel Street e empreendedora no MIT, tem como missão promover a interação saudável entre humanos e sistemas de IA. Criou e vendeu três empresas até se estabelecer na Babel Street em NY. Na sua visão, o risco, a noção e os crimes possíveis são um problema global. E, mais do que nunca, é necessário olhar com atenção para o que os dados mostram.
Nada mais complexo, ainda mais quando sabemos que a Inteligência Artificial não é mais parte de uma área da empresa. Ela afeta todas as áreas de negócio, todas as atividades, tudo o que fazemos.
Existem duas formas de utilizar e desenvolver sistemas de IA em serviços financeiros:
- Automação
- Amplitude
E como é possível criar uma terceira via de desenvolvimento baseada em colaboração? Várias pesquisas realizadas nos últimos 12 meses, mostraram, em metanálise (análise de diversas pesquisas e estudos ponderados), que na maior parte das grandes organizações do mundo, 64% dos empregados de áreas de negócio administrativas usaram IA e sentiram que ela trouxe benefícios palpáveis. Um dado impressionante é que o uso de sistemas de produtividade associados à IA aumentam a satisfação do colaborador em mais de 340%!
Não por acaso, as IAs generativas caíram rapidamente no gosto dos colaboradores porque se basearam em design centrado no humano. E há um sentimento generalizado de que todos querem trabalhar mais rápido e manipular informação mais velozmente. As pessoas também querem reduzir a fadiga e o estresse na tomada de decisões, evitando discussões inúteis e prolongadas.
Sim, as IAs vão desconstruir mecanismos e organizações baseadas em comando e controle, porque vão alargar diferenças competitivas de uma maneira inimaginável. E essa é a abordagem de amplitude: pensar na adoção de IA para além da automação e como recurso para desenvolver geometricamente as habilidades naturais dos colaboradores.
Inteligência artificial: um colega, mais do que uma ameaça
Assim, no dia a dia, a IA é vista mais como um colega de trabalho do que uma ameaça capaz de lhe tirar o emprego. Mas há uma consciência generalizada de que a interface e a combinação de IA com pessoas depende tanto de aprimoramento do desenvolvimento de UX quanto dos sistemas em si. A mitigação de riscos passa pela transparência e pela construção de sistemas confiáveis, englobando diretrizes regulatórias, analíticas e expectativas dos clientes.
Finalmente, é indispensável ter em mente que sempre há riscos associados ao uso de IA, como em qualquer atividade humana. Segundo Catherine, é crucial compreender que todos temos e assumimos diferentes níveis de risco é que esses perfis devem fazer parte de qualquer sistema de IA. Entender as dimensões e variedades de risco são premissas para que empresas possam utilizar IA com maior confiabilidade e promoverem a transição para um modelo mais híbrido e eficaz.
Takeaways do Money20/20
- Inteligência Artificial é uma disrupção em curso, com impactos ainda modestos sobre negócios e a sociedade;
- IA vai assumir uma posição essencial na nossa relação com serviços financeiros e vai ampliar a inclusão e a bancarização. Um bom exemplo sobre a capacidade de sistemas inteligentes promoverem inclusão foi a adoção do Pix no mercado brasileiro. Já são mais de 650 milhões de chaves registradas e mais de 100 milhões de operações diárias;
- Inclusão financeira baseada em sistemas de IA assume uma posição essencial quando consideramos que os custos de vida para aposentados crescem em ritmo muito maior do que suas rendas e aposentadorias;
- IA é hype e há muita controvérsia acerca dos limites regulatórios que venham a ser estipulados para seu uso, particularmente no mercado financeiro;
- É imperativo investir no desenvolvimento de sistemas resistentes a fraudes e que permitam detectar e combater essas fraudes. Vale ressaltar que o fraudador sempre está um passo à frente;
- IAs assumem posição essencial nas questões de autenticidade, gestão de identidade e de riscos;
- Inteligência Artificial é vista muito mais como suporte e colega de trabalho do que como ameaça, principalmente nas áreas administrativas;
- Criar sistemas capazes de identificar personas e perfis de risco é básico para uma convivência saudável com as IAs.