“Antes da pandemia a discussão no Brasil era o fim do SUS e sua substituição por planos de saúde populares. Hoje ninguém mais debate isso no Brasil, isso porque o SUS mostrou, mesmo com tantas imperfeições, as suas virtudes incontáveis. E cada vez mais, esse modelo se destaca na saúde não só do Brasil, mas de todo o mundo, sobretudo ao que se refere ao drama do acesso”. Com essas palavras, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, iniciou sua participação na I Jornada de Direito da Saúde, que ocorre nos dias 13 e 14 de junho na sede do Conselho da Justiça Federal (CJF), em Brasília.
O evento é uma realização do Centro de Estudos Judiciários (CEJ/CJF), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). O vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do CJF, ministro Og Fernandes, coordena a Jornada, enquanto o corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, e o diretor-geral da Enfam, ministro Mauro Campbell Marques, exercem a coordenação científica.
Daiane Nogueira de Lira, conselheira do CNJ e advogada da União; os juízes federais auxiliares da Corregedoria-Geral da Justiça Federal, Alcioni Escobar da Costa Alvim e Erivaldo Ribeiro dos Santos; a juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Beatriz Fruet de Moraes; e o secretário executivo da Enfam, Fabiano da Rosa Tesolin, são responsáveis pela coordenação executiva.
Obstáculos jurídicos na saúde
Na oportunidade, Flávio Dino, o primeiro conferencista da Jornada de Direito da Saúde, abordou o tema “Saúde no Brasil: atuais desafios jurídicos”. Traçando então um paralelo entre Brasil e Estados Unidos, no quesito “saúde”, o ministro do STF ressaltou que muitos brasileiros se surpreendem ao descobrir que não são todos os países do mundo que oferecem atendimento médico gratuito. E isso acontece mesmo em uma das maiores economias do planeta – os Estados Unidos – que tem o serviço de saúde mais caro do planeta.
Dino está certo e a prova está na pesquisa “Espelho, Espelho 2021: Refletindo Negativamente a Saúde nos EUA em Comparação com Outros Países de Alta Renda”, do The Commonwealth Fund, fundação privada dos EUA cujo objetivo declarado é “promover um sistema de saúde de alto desempenho que alcance melhor acesso, melhor qualidade e maior eficiência, especialmente para os mais vulneráveis da sociedade”.
SUS: essencial para saúde
Flávio Dino, que governava o Maranhão na época da pandemia, enfatizou a importância do SUS como principal política de inclusão social e uma das maiores ferramentas para a redução das desigualdades no país. “Foi na Covid-19 que percebemos o quanto é importante um sistema de saúde público, gratuito e universal”, disse ele, que ficou à frente do estado com menos incidência de casos e óbitos por coronavírus no país.
Contudo, apesar de ser um “sistema engenhoso”, nenhuma vitória está imune a defeitos, nas palavras de Dino, que trouxe, para a ocasião, os cinco principais desafios da saúde que contrastam com a ideia de vitória do SUS e que, naturalmente, afetam o setor privado.
Os desafios
Assim, o primeiro desafio é o controle de qualidade na saúde. “Nós sabemos que o SUS é o pioneiro do cooperativismo no Brasil. Depois dele, tivemos o Fundef, Fundeb, Sistema Nacional de Educação, o SUA, Sistema Único de Assistência Social, e mais recentemente, a partir de 2018, o Sistema Único de Segurança Pública, instituído pela Lei n.º 13.675”, lembrou Dino.
“Ocorre que, no que tange à educação, há um descompasso. Quando eu saí do Ministério da Justiça para o STF, fiquei 22 dias no Senado. E nesse período, eu apresentei o Projeto de Lei n.º 287/2024, que versa sobre a construção de um sistema de qualidade tanto dos hospitais públicos quanto privados. A matéria está lastreada no artigo 197 da Constituição Federal, que busca a fixação de padrões de qualidade e atributos de qualificação das unidades de saúde e a avaliação periódica dessa avaliação”.
Fake news
Em segundo lugar, há o desafio da fake news em matéria de saúde. Episódios dessa natureza se manifestaram recentemente, nas enchentes do Rio Grande do Sul. “Há indivíduos quem consideram a fake news engraçada ou algo menor, mas eu desconsidero. Normalmente, a mentira é do mal, não é à toa que biblicamente o diabo é chamado de pai da mentira. E, em matéria de saúde, fake news é algo totalmente satânico, ocasionando um prejuízo tangível em todas as partes. Só para exemplificar, temos o programa nacional de imunização do Brasil, que foi iniciado em 1975. E hoje, lamentavelmente, observamos queda no número de pessoas vacinadas, devido a 100 mil publicações de conteúdos antivacinas”, explicou Flávio Dino.
Segundo o ministro, isso se dá porque nós estamos mais confiantes nas ferramentas tecnológicas do que nos nossos próprios sentidos. Só para exemplificar, ele citou o professor Yuval Noah Harari, que conta a história de um casal que viajava em uma estrada. Um deles disse “essa estrada está interrompida”, ao passo que o outro afirmou “o Waze está dizendo para continuarmos”. Eles seguiram e caíram em um buraco. “Nós temos a crença que as ferramentas de tecnologia são as portadoras da verdade, e isso é algo instintivo. É uma escravização em relação aos algoritmos. E se observa que se o sistema de Justiça não colocar limites, em breve nós teremos julgadores em dúvida dos seus próprios discernimentos, consultando a IA sobre como julgar”.
Conquistas ou infortúnio?
Já o terceiro desafio diz respeito aos arranjos federativos. Nesse aspecto, as emendas parlamentares ao orçamento da União foram chamadas pelo ministro do STF de “conquista” ou “problemas”. Isso porque as emendas sairão do orçamento geral e vão diretamente para os municípios. A pergunta é: “existe controle sobre isso?”. Ademais, ele chama atenção para o Tema 1234 da Repercussão Geral do Supremo, com relatoria do ministro Gilmar Mendes. Nesse ínterim, está em vigor uma liminar em razão de decisões do próprio Supremo e do STJ tentando provisoriamente regular esse assunto.
É importante destacar que o Tema 1234 discute a legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não padronizados no SUS. Portanto, diante do complexo sistema engendrado e das dificuldades de implementação de garantir saúde igualitária em um país continental, extremamente desigual, “esse é um tema jurídico central”. Dino também citou, em sua explanação, o Tema 1033. Trata-se de um recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, caput; 196 e 199, §1º, da Constituição Federal, se as despesas médicas do hospital particular que, por ordem judicial, prestou serviços em favor de paciente que não conseguiu vaga em unidade do Sistema Único de Saúde devem ser pagas pela unidade federada pertinente segundo o preço arbitrado pelo prestador do serviço ou de acordo com a tabela do SUS.
Má distribuição de médicos
O quarto obstáculo diz respeito ao ensino médico e à má distribuição dos profissionais no Brasil. O Conselho Federal de Medicina (CFM), conforme o seu último estudo “Demografia Médica”, aponta que o país conta com 545,4 mil médicos, um dos maiores números do mundo. “Nas capitais, nós contamos com uma média de 7 médicos para cada mil habitantes. Nos interiores, esse número cairá para 2 médicos para cada mil habitantes. Agora, na Amazônia, há 1,73 médicos para cada mil habitantes. Veio a pandemia; onde morre mais gente?”, questionou Dino. “Será que os vazios assistenciais não são uma questão jurídica, constitucional, que impacta o artigo 196 da Carta Magna?”.
O aumento no número de médicos seguiu o crescimento das escolas médicas e do número de vagas na última década. Em 2010, a proporção era de 1,76 médicos por mil habitantes, com 343,7 mil registros de médicos no país. Em 2022, os registros aumentaram para quase 600 mil.
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o Brasil apresenta um dos maiores crescimentos no número de médicos por mil habitantes.
- O índice atual no Brasil, de 2,56 médicos por mil habitantes, está próximo das médias registradas em outros países no levantamento mais recente da OCDE, de 2021;
- No relatório, os Estados Unidos têm 2,6 médicos por mil habitantes, enquanto o Japão e a Coreia do Sul possuem 2,5. Já a Colômbia conta com 2,3 médicos ativos por mil habitantes;
- O número atual no Brasil é superior ao da China (2,2), da África do Sul (0,8) e da Índia (0,9).
Regulação
Por fim, o desafio 5 diz respeito à autonomia dos profissionais, aos direitos do paciente e às competências normativas do CFM. Só para ilustrar, a Câmara dos Deputados aprovou no dia 12 de junho o regime de urgência para o projeto de lei que visa proibir qualquer aborto após as 22 semanas de gestação, equiparando-o ao homicídio. O PL n.º 1.904/2024 conta com o apoio da Frente Parlamentar Agropecuária, da Frente Parlamentar Evangélica e da “bancada da bala”, três dos grupos mais conservadores do Congresso. Contudo, a matéria ainda não possui data para ser votada.
A proposta do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) modifica dispositivos do Código Penal para equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. Segundo o artigo 121 do Código Penal Brasileiro, o homicídio simples envolve o ato de tirar a vida de alguém sem a presença de circunstâncias agravantes, como motivos fúteis, crueldade ou emboscada. Este crime é considerado menos severo do que o homicídio qualificado e é passível de pena de reclusão de 6 a 20 anos.
“Isso promoverá a seguinte situação jurídica: se for um caso de estupro, a paciente que abortou terá uma pena mais alta que o estuprador”, explicou Dino.
Vale destacar que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou no dia 17 de maio a suspensão da resolução aprovada pelo CFM para proibir a realização da chamada assistolia fetal para interrupção de gravidez. O procedimento é usado pela medicina nos casos de abortos previstos em lei, como o caso de estupro. O episódio foi lembrado por Flávio Dino na ocasião.
Aborto x Constituição Federal
Em comunicado de esclarecimento, o CFM destaca que a resolução não tem a intenção de se opor ao chamado aborto legal e está respaldada na Constituição Federal, que assegura o direito inviolável à vida, sem submissão a tratamento desumano ou degradante. “Mulheres que se enquadram nos critérios podem continuar realizando a interrupção de uma gravidez nos serviços do SUS”, destaca o documento.
Na sentença, o ministro Alexandre de Moraes argumentou que houve “abuso do poder regulamentar” por parte do CFM ao estabelecer uma regra não prevista em lei para impedir a realização de assistolia fetal em casos de gravidez resultante de estupro. Moraes também enfatizou que o procedimento só pode ser realizado pelo médico com o consentimento da vítima. “A legislação penal não estabelece explicitamente quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal, cuja legalidade, se presentes esses pressupostos, e em teoria, estará totalmente validada”, concluiu.
Transplantes
Dando continuidade ao evento, o cardiologista Roberto Kalil Filho, professor titular do departamento de cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e diretor-geral do centro de cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, tratou do tema “Modelo de transplante de órgãos no SUS – Impacto mundial”.
O palestrante destacou a relevância dos transplantes de rins e coração, abordando as complexidades ligadas à doação de órgãos. “Um desafio contínuo é a alta taxa de recusa de doação por parte de cerca de 45% das famílias quando confrontadas com a decisão de doar os órgãos de um familiar. Um doador pode salvar dezenas de vidas”.
Números
Ele também apresentou o número brasileiro de transplantes de 2013 a 2023, o qual vem aumentando sobremaneira, sendo que só do coração foram 6.500 transplantes até dezembro de 2023. Ademais, 35 mil de fígado e 97 mil de rim. Um dos principais obstáculos é que 45% dos integrantes de uma família negam a doação, representando um elevado índice de recusa familiar ao transplante. Há ainda uma alta disparidade entre os estados e regiões. Outros problemas apresentados por Kalil são: limitações financeiras e baixo índice de diagnóstico de morte encefálica.
O conferencista fez um apanhado, em termos de comparação, das regiões do Brasil no que diz respeito à doação de órgãos, apresentou a evolução da taxa anual de doadores no país, considerada “insuficiente” pelo especialista, bem como as doações – de vivos e falecidos – por estados. São Paulo liderou a lista em 2023 com 362 doações de vivos e 1.571 falecidos. Na sequência, aparece Minas Gerais, com 778 transplantes. E, em terceiro lugar, Rio Grande do Sul, com 517. Alagoas aparece em penúltimo lugar do rol, com 3 doações durante todo o ano-calendário. Rondônia ficou em último lugar, com apenas um transplante. O Brasil contabilizou no período 6.017 doações.
A última palestra da Jornada de Direito da Saúde foi ministrada pela professora titular da de emergências clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Ludhmila Abrahão Hajjar. Ela também é diretora da cardiologia do Hospital Vila Nova Star e DF Star, da Rede D’Or. Ela tratou dos “desafios de garantir o acesso à saúde de alta complexidade”.
Judicialização
Em sua explanação, a Dra. Ludmila abordou o atual panorama da saúde no Brasil e no mundo. Depois, em contrapartida, ela passou para a atual situação brasileira, enfatizando o problema da judicialização, em particular.
Ademais, vez que a doença cardiovascular é a principal causa de óbito em todo o mundo, ela salientou que houve uma modificação no perfil.
“Nós modificamos a lógica da saúde de acidentes para doenças crônicas. E isso é sinônimo de alta complexidade e maiores custos. Uma população que envelhece tem sobre si uma maior ocorrência de fatores de risco para doenças crônicas. Entre elas, estão o sedentarismo, a pressão alta, os problemas do colesterol, o diabete, o estresse, as doenças mentais… E hoje um dos maiores desafios na saúde é o enfrentamento a doenças crônicas”.
Sobre a sustentabilidade do sistema, a judicialização é uma realidade que impacta significativamente a saúde brasileira na totalidade.
Portanto, ela considera fundamental haver um equilíbrio entre o direito à saúde garantido pela Constituição e a sustentabilidade do sistema. Por isso, é necessário buscar soluções que reduzam a judicialização, garantindo o acesso universal e equitativo aos serviços de saúde. Medidas como aprimoramento da gestão, fortalecimento da atenção básica e a elaboração de protocolos clínicos são essenciais para enfrentar esse desafio.
Como resolver as lacunas?
A judicialização também foi abordada pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão.
Salomão acredita que, diante da gravidade do tema, é necessário expandir a discussão em seus diversos contextos. Ele também lembrou dos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Justiça em Números aponta que o número de ações judiciais relacionadas à saúde aumentou em 21,3% entre 2022 e 2023. “Esse dado alarmante tem impacto não apenas na resolução judicial dos casos, mas também nos orçamentos públicos”.
O ministro Mauro Campbell Marques, diretor-geral da Enfam, afirmou que a participação de todos “demonstra o comprometimento coletivo em busca de soluções práticas e eficazes”.
Marques pontou que uma ação conjunta da Justiça Estadual e Federal na administração de processos pode ajudar a equilibrar a judicialização em larga escala.
Já a vice-presidente de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), desembargadora Joriza Magalhães Pinheiro, enfatizou a relevância da qualificação técnica dos juízes. Isso seria importante, em suas palavras, “para evitar dois extremos”. Ou seja, “negar ou conceder qualquer pedido sem levar em consideração as evidências científicas, impactos e consequências”.
Preocupação
E o vice-presidente do STJ e do CJF e corregedor-geral da Justiça Federal, ministro Og Fernandes, na abertura da programação, destacou a relevância do assunto. Ele destacou que “o Brasil está com a judicialização em um nível preocupante”.
Assim, o assunto “requer uma abordagem apropriada, que leve em consideração a política pública de saúde, sem perder de vista o seu destinatário”, enalteceu Og.
Durante a tarde do dia 13 de junho, os participantes se dividiram em cinco comissões temáticas, sob a presidência de ministros do STJ. Elas analisaram as 185 propostas de enunciados aprovadas pela coordenação do evento. Os grupos são os seguintes:
- Saúde Pública;
- Saúde Suplementar;
- Evidência e Papel das instituições Anvisa/Conitec/ANS;
- Oncologia, doenças raras e regulação de filas;
- Apoio à gestão do processo e tomada de decisão.
Hoje, dia 14 de junho, acontece a reunião plenária para votação das propostas de enunciados escolhidas nas comissões.
Fotos: Assessoria de Comunicação Social do CJF.