A literatura brota da vivência dos conflitos reais e, muitas vezes, explicita o que está ocorrendo na atualidade. Apesar de o escritor não ser um teórico, sob pena de ser um péssimo artista, acaba sendo um explicitador do mundo. Ossos do ofício. Olhando o Brasil de hoje, fico tentado a refletir como um dos maiores escritores de língua portuguesa veria nosso povo brasileiro nesta situação extrema recentemente vivida: a greve/locaute dos caminhoneiros.
Explico. Uma das ideias brilhantes do escritor português José Saramago foi imaginar como as pessoas se portam em situações-limite. Podemos lembrar de dois romances: Ensaio Sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte.
No primeiro romance – Ensaio Sobre a Cegueira, em certo dia, algumas pessoas começam a ficar cegas e, por contágio, o número de cegos aumenta em uma escala estonteante. É preciso isolar essas pessoas e o que acontece nesse abrigo/presídio é absolutamente trágico: grupos de cegos tomam o poder e submetem os outros a situações absolutamente degradantes. Muitos leitores não conseguem sequer acabar o livro de tanta violência descrita nesta condição humana.
No segundo romance – As Intermitências da Morte, numa manhã normal, em um CERTO país, ocorre o inusitado: ninguém mais morre. O que parecia de início um motivo de felicidade – a vitória contra a morte – vai se tornando algo trágico: os corretores de seguro de vida perdem a razão da sua profissão; os bispos se perguntam como constranger os fiéis sem a ameaça premente do inferno; como pensar no nascimento de novas crianças, se os velhos não morrem mais; os hospitais ficam lotados, pois os doentes continuam a chegar e os leitos não são liberados.
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Lentamente fica claro que a morte tem uma função social e seu fim joga as pessoas em um mundo sem regras.
Guardadas as proporções, o Brasil viveu uma dessas situações-limite. A ausência de combustível por uma semana nos deixou à mercê de situações extremas: falta de transporte, desabastecimento nos supermercados, produção paralisada, festas suspensas, ruas sem policiais etc. Alguns gostaram: as estatísticas de crime devem ter diminuído, a poluição foi das menores, os poucos ônibus em circulação trafegaram em velocidade espetacular. Mas o tempo foi passando e as pessoas foram ficando tensas. A vida foi ficando difícil. Apoio ou não a greve dos caminhoneiros? To be or not to be? As dúvidas foram crescendo.
E se a greve tivesse demorado um mês e não uma semana? Voltaríamos a um estado de guerra hobbesiano? O homem como o lobo do homem? O medo de ter uma morte trágica na esquina? Não sei… Eram tantos interesses e incompetências em jogo que é difícil saber o que José Saramago pensaria dessa situação-limite. Mas sei que as pesquisas de opinião encontraram um quadro intrigante: mais de 85% da população apoiou a greve, mas esses mesmos 85% se recusam a arcar com os custos das medidas a serem tomadas para atender às reinvindicações. O que fazer diante desta constatação? Continuo sem saber… Só um escritor com a competência de José Saramago para explicitar quem é o povo brasileiro. Sinto-me incapaz desta missão.