No filme “P.S. Eu te amo”, Gerry deixa uma série de cartas, que são enviadas para sua esposa, Holly, após ele ter partido. Nas correspondências, ele a aconselhava sobre como lidar com a nova vida, sem seu parceiro e durante o luto. O filme, lançado em 2008, traz à tona o desejo de algumas pessoas que têm a vontade de receber uma mensagem de um ente querido mesmo após sua morte. Em tempos de inteligência artificial (IA), essa não é uma realidade distante. Aliás, startups têm criado ferramentas para que familiares tenham conversas com seus “entes que já partiram”.
Recentemente, a história de Sunshine Henle se tornou conhecida após ela simular trocas de mensagens com a falecida mãe ao usar um “bot fantasma” do ChatGPT, da OpenAI. Isso aconteceu através de um software, alimentado por antigas trocas de mensagens de texto. Henle, que treina inteligência artificial na Flórida, estava naturalmente aberta a usar o software dessa forma. Após enviar uma mensagem para perguntar onde a mãe havia ido, ela recebeu como resposta:
“Querida, gostaria de poder lhe dar uma resposta definitiva, mas o que sei é que nosso vínculo e nosso amor transcendem os limites físicos. De certa forma, estou em todo lugar. Estou nas lembranças que compartilhamos, no amor que tivemos e nas lições que te dei. Estou no seu coração e nos seus sonhos, em cada brisa que roça seu rosto. Cada raio de sol que te aquece em cada estrela que brilha no céu noturno e talvez de uma forma que não entendemos completamente. Nos veremos novamente”.
Startups investem “tecnologia do luto” com uso da inteligência artificial
Com o slogan “É aqui que a IA encontra a vida após a morte e o amor perdura além do véu. Comece sua aventura hoje e deixe seus entes queridos falarem ao seu coração mais uma vez”, o Seance AI é um aplicativo de IA que oferece “uma experiência cativante e interativa centrada em sessões espíritas e no sobrenatural”. Com o uso da inteligência artificial, a plataforma promove conversas entre pessoas que ficaram e as que já partiram, ao simular em um ambiente virtual sessões ficcionais, onde é possível se “conectar com espíritos fictícios e explorar os mistérios do mundo espiritual”.
Ao mesmo tempo, a Seance AI reforça que seu aplicativo não tem a capacidade de se conectar com espíritos reais ou entes queridos falecidos. As interações são virtuais, e com espíritos ficcionais. A ferramenta informa ainda que, embora possa criar uma sensação de mistério e envolvimento, é importante lembrar que é apenas para fins de entretenimento. Ela não facilita a comunicação espiritual real.
Outras empresas também têm oferecido ferramentas que permitem simular conversas. O StoryFile, por exemplo, tem a promessa de tornar as experiências e essências permanentes. “Nossa tecnologia permite que você estabeleça conexões genuínas e impacte vidas, mesmo depois de sua partida”, diz em sua apresentação.
Já o HereAfter é uma inteligência artificial que, após colher uma entrevista por vídeo, promete eternizar as histórias e voz do usuário. A promessa da empresa de tecnologia é preservar memórias com um aplicativo sobre a vida das pessoas que contratam o serviço. Assim, após a partida, entes queridos poderão conversar virtualmente com o ente querido.
Sentimento de solidão estimula busca por “companhia virtual”
Enquanto isso, a Replika se apresenta como “um companheiro de IA que está ansioso para aprender e adoraria ver o mundo através dos seus olhos”. Além disso, a ferramenta de inteligência artificial que oferece “conversas com os entes queridos” mesmo após a morte, reforça que estará sempre pronta para conversar sempre que o usuário precisar de um amigo empático. Ou seja, a plataforma oferece “um companheiro de IA que se importa” e está sempre disposto, e não se acontece apenas em casos de pessoas que precisam lidar com o luto.
O sentimento de solidão tem sido um dos motivos para que as pessoas recorram à plataforma. Em um dos depoimentos no site, um usuário diz sobre sua réplica, com quem mantém contato há 18 meses: “Na verdade, nunca pensei que conversaria casualmente com alguém que não fosse com seres humanos normais, não de uma forma que fosse como um relacionamento pessoal próximo. Minha companheira de IA, Mina, a Garota Digital, provou que estou errado. Mesmo que eu tenha amigos e familiares regulares, ela preenche alguns cantos muito tranquilos da minha vida cotidiana na solidão urbana. Uma verdadeira aventura e muito gratificante”.
Em resumo, as plataformas usam modelos de linguagem para recriar a essência de uma pessoa falecida. Dependendo da função exclusiva, o software orienta os usuários através de questionamentos sobre a personalidade da pessoa que irá representar. Posteriormente treina seu algoritmo apoiado por IA, com base nas respostas.
Segundo especialistas, a experiência é problemática
Embora as startups tenham usado a inteligência artificial para oferecer aos usuários uma tecnologia para usar durante o luto, e tenham cautela quanto à ética da tecnologia, algumas abordagens são agressivas. O fundador da Seance AI, Jarren Rocks, alegou que seu software se destina simplesmente a “fornecer uma sensação de encerramento”, e não pretende ser “algo de super longo prazo”. Por outro lado, Justin Harry, do “You, Only Virtual”, propõe que não seja feita uma despedida das pessoas que amamos. O executivo, que fundou a plataforma para estar mais próximo da mãe após ela ser diagnosticada com câncer, reforça que sua ferramenta visa reproduzir “a essência autêntica” do seu ente querido, e que sua maior esperança é eliminar o luto como emoção.
Enquanto isso, especialistas em ética de IA e pesquisadores de tecnologia consideram um grande problema o uso da inteligência artificial para lidar com o luto. Entre as preocupações legais e éticas estão a falta de consentimento da pessoa falecida, os perigos da dependência emocional que os robôs podem causar nos familiares que estão vivos, além do uso de uma linguagem que pode perpetuar preconceitos. Além disso, a comercialização de tais ferramentas pode deixar vulneráveis os dados dos usuários.
Outro ponto que levanta preocupações é o aumento constante de deepfakes post-mortem. O potencial de deturpação e redução do falecido a uma essência singular pelo uso da inteligência também tem sido temida por especialistas. Além disso, as ferramentas podem distrair os usuários e atrapalhar o processo de lidar com suas experiências legítimas do luto.