A litigância abusiva refere-se à junção de duas ideias. Em primeiro lugar, a litigiosidade, que é o conflito levado ao Poder Judiciário. E, em segundo lugar, a conduta predatória, que se caracteriza pelo uso excessivo dos recursos judiciais em detrimento da parte contrária. Em suma, o termo “litigância predatória” se liga ao ajuizamento de ações em massa. Nela, a conduta predatória ganha sentido a partir de uma certa escala, embora sua caracterização não dependa desse limite.
Importante notar que o número elevado de ações não é, por si só, um indicativo de litigiosidade predatória. E que práticas como litigância de má-fé não se enquadram exatamente nesse conceito, embora também representem abusos.
Assim, a litigiosidade predatória pode ter uma dimensão extraprocessual, sendo a repetição de ações em diversos processos capaz de descredenciar a pretensão inicial. Trata-se de um problema grave que só pode ser entendido ao se observar o conjunto, e não apenas casos isolados. Esse conceito foi um dos que foram discutidos no 23º Seminário de Relações de Consumo do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC).
Litigância no consumo
O tema central do seminário foi “Litigância nas Relações de Consumo: Impactos e Estratégias”. Renê Medrado, presidente do IBRAC, e Fabíola Meira de Almeida Breseghello, diretora do Comitê de Relações de Consumo do IBRAC, fizeram a abertura. Eles reafirmaram o compromisso da instituição em promover debates e ações que fortaleçam a defesa do consumidor.
Por sua vez, Vitor Hugo do Amaral Ferreira, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, discorreu sobre as novas diretrizes do DPDC no que tange à articulação entre órgãos de defesa do consumidor e a importância de uma abordagem integrada nas questões que envolvem a litigância e a proteção dos direitos dos consumidores.
Litigância e descongestionamento do Judiciário
Os organizadores dividiram o 23º Seminário em três painéis. O primeiro deles tratou o tema “Acesso à Justiça pelo consumidor de descongestionamento judicial: é possível a sua coexistência no combate à litigância abusiva?”.
Entre os painelistas, destaque para a participação de:
- Airton Pinheiro de Castro, juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP);
- Marina Paullelli, membro do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec);
- Thais Matallo Cordeiro, sócia no Machado Meyer Advogados, especialista em Direito das Relações de Consumo.
Os painelistas discutiram a importância da educação dos consumidores sobre seus direitos e deveres, “um verdadeiro convite à conscientização”, nas palavras de Thais: “um consumidor bem-informado é um protagonista na busca por soluções justas”.
Como os advogados e as empresas podem colaborar para avançar na discussão sobre litigância abusiva e suas consequências?
Thais Cordeiro respondeu essa pergunta da seguinte forma:
“Primeiramente, para as empresas, é fundamental o fortalecimento dos SACs e canais de atendimento, adequando-os ao Código de Defesa do Consumidor. “A atualização do Decreto do SAC é uma medida muito bem-vinda. Além disso, é essencial promover o atendimento ao consumidor, incentivando o contato humano, em vez de depender exclusivamente de robôs ou Inteligência Artificial, é de suma importância”.
SAC qualificado
Ademais, a resposta ao consumidor deve ser qualificada, com maior adesão ao Código de Defesa do Consumidor e aproveitamento de plataformas de resolução de conflitos. Entre elas, o Consumidor.gov e as intermediações dos Procons, para descongestionar o Judiciário. “Uma estratégia de baixo custo, mas eficaz para fornecedores de produtos e serviços”, segundo Thais.
No que se refere ao Poder Judiciário, no parecer de Airton, é vital perceber a atuação de grandes litigantes e a litigância de massa. Segundo ele, é de suma importância identificar problemas estruturais por trás das demandas frequentemente judicializadas, sem necessariamente associá-las a abusividades. Os casos considerados repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), frequentemente, refletem questões de consumo relevantes. Por fim, em relação à advocacia, o envolvimento da OAB é crucial. “A OAB deve investir na formação dos advogados por meio de cursos de capacitação e complementação ética, vez que colabora ativamente com o CNJ nesse aspecto”, pontuou Airton.
Ficou óbvio no painel ainda que a qualificação dos advogados é essencial para um estímulo saudável da profissão. E em situações em que o advogado perceba a impossibilidade de esgotar esferas administrativas antes de iniciar um caso, é vital que forneça a devida justificativa.
Relações interinstitucionais
Do ponto de vista do Judiciário, para combater a litigância abusiva, o TJSP está firmando relações interinstitucionais. Airton Pinheiro de Castro citou a parceria realizada com a OAB, a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e outras entidades de classe, formando um comitê para discutir questões de litigância abusiva. “Também estamos em contato com o Ministério Público e já realizamos algumas reuniões a respeito.”
E, nesse aspecto, um ponto crucial a ser ressaltado é a baixa utilização das demandas coletivas. As ações coletivas podem ser extremamente valiosas para mitigar situações em que a litigância de massa se transforma em um negócio privado para uma fração diminuta da sociedade que utiliza o Judiciário de forma disfuncional.
Resolução administrativa
O tema do segundo painel do 23º Seminário de Relações de Consumo foi “Resolução administrativa como forma de prevenção da litigiosidade”. A atividade contou com as explanações dos seguintes especialistas:
- Renata Ruback, diretora executiva do Procon Carioca/RJ;
- Gustavo Guerra Fernandes, gerente executivo da Stone;
- Gustavo Gonçalves Gomes, sócio na Siqueira Castro Advogados.
Gustavo Gonçalves Gomes, responsável pela mediação do painel, afirmou que a raiz do problema de litígios excessivos no Brasil está, em grande medida, enraizada na cultura. Em outras palavras, o Brasil é um país onde as pessoas costumam ter um temperamento forte e gostam de confrontos. “Temos um sistema com um número elevado de advogados… Essa realidade faz com que surjam profissionais muito criativos, que estão constantemente buscando soluções e questões que possam beneficiar seus clientes. Além disso, possuímos um robusto Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. E, provavelmente, temos o melhor código de defesa do consumidor, que, como o próprio nome sugere, não é apenas um regulador das relações de consumo.”
Ao analisar a questão dos litígios, ele percebe que o processo civil, que deveria ser um instrumento acessório para a prestação da justiça, tornou-se uma ciência autônoma, focada, muitas vezes, em disputas.
Clientes do Poder Judiciário
“Mas, não podemos responsabilizar somente os advogados ou as empresas por isso. Um exemplo que merece destaque é o da administração pública, na minha visão pessoal. Hoje, o maior cliente do Poder Judiciário é, em grande parte, a própria administração pública. O governo federal, os estados e os municípios são os principais demandantes e onde ocorre a maior concentração de ações litigiosas diárias. Portanto, é crucial que tenhamos consciência dessa situação.”
Por sua vez, Renata Ruback, diretora executiva do Procon Carioca/RJ, chamou a atenção para a transformação significativa na forma como os consumidores se relacionam, especialmente nos últimos 35 anos desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor. “Portanto, não podemos abordar os problemas antigos com as mesmas soluções de antes; é necessário adaptá-las aos novos tempos. Com essa evolução, as relações de consumo se tornaram constantes, funcionando 24 horas por dia, acessíveis na palma da mão de todos. Isso, naturalmente, aumentou o volume de demandas e problemas, e o Poder Judiciário não terá recursos suficientes para lidar com essa situação. As empresas, por sua vez, também enfrentarão desafios para resolver todos os problemas e atender os clientes com excelência. Assim, os Procons podem não ter capacidade para acolher todas as demandas dos consumidores.”
Ela ressaltou ainda que, com a revolução tecnológica, todos nós nos tornamos vulneráveis. “Anteriormente, era possível analisar um contrato ou a forma de venda em uma loja, de maneira mais simples e analógica. Hoje, muitos processos ocorrem em data centers e nuvens, dificultando o acesso a algoritmos e dados. Isso levanta um grande desafio: como lidar com cada uma dessas demandas que surgem para os consumidores?”
Diálogo para resolver problemas
Respondendo à própria pergunta, Renata Ruback considera o diálogo como fundamental. “Nenhuma solução será encontrada apenas nos balcões dos Procons, no Poder Judiciário ou nas empresas. É necessária uma construção conjunta, levando em conta a mudança nas interações sociais. Recentemente, em uma atuação na OAB na Comissão de Juizados Especiais, que é a principal porta de entrada para reclamações de consumo, discutimos o uso da Inteligência Artificial para facilitar a petição de ações pelo consumidor. Contudo, o problema se torna mais complexo: se antes a preocupação era com advogados que ajuizavam muitas ações, agora podemos ter uma situação em que a população distribui ações de forma indiscriminada, utilizando tecnologia, o que levanta questões sobre a legitimidade e a fraude.”
Na ocasião, foi possível ver ainda que a plataforma Consumidor.gov.br é vista como importante instrumento de mediação extrajudicial, mas precisa ser aprimorada e ter maior adesão tanto de empresas quanto de consumidores.
O 23º Seminário de Relações de Consumo do IBRAC ainda contou com o painel “Cases de Grandes Empresas e a atuação em face de provável abusividade”. Compondo a mesa, estiveram: Augusto Abreu Rodrigues, gerente executivo jurídico do Banco Bmg; Camila Garcia, gerente jurídica do Mercado Livre, com gestão sobre o contencioso civil da empresa; e Gabriela Vitiello Wink, sócia do TozziniFreire Advogados.
Dados do CNJ
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, do Relatório Justiça em Números, as despesas da Justiça em 2023 foram de R$ 132,8 bilhões, o que representa 1,2% do PIB ou 2,38% dos gastos totais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
O Poder Judiciário finalizou o ano de 2023 com 83,8 milhões de processos pendentes aguardando alguma solução definitiva. Destes, 18,5 milhões, ou seja, 22%, estavam suspensos, sobrestados ou em arquivo provisório, aguardando alguma situação jurídica futura. Desconsiderados tais processos, tem-se que, ao final do ano de 2023, existiam 63,6 milhões de processos judiciais efetivamente tramitando.
O número de casos baixados no ano de 2023 foi o segundo maior da série histórica, com quantitativo de processos solucionados um pouco inferior somente ao verificado em 2019.
Quanto aos casos novos, se forem consideradas apenas as ações judiciais efetivamente ajuizadas pela primeira vez em 2023, sem computar os casos em grau de recurso e as execuções judiciais (que decorrem do término da fase de conhecimento ou do resultado do recurso); ingressaram 22,6 milhões ações originárias em 2023, equivalente a 5,8% a mais que o ano anterior. Esse dado é interessante para mostrar que o acesso à Justiça tem crescido após o término da pandemia e que o ano de 2023 foi o de maior ponto da série histórica no que se refere às demandas que chegam ao Judiciário.