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A Inteligência Artificial pode reviver memórias passadas

A Inteligência Artificial pode reviver memórias passadas

Desde fotografias de momentos que existem só na lembrança a controversas interações com entes falecidos, tecnologia tem criado verdadeiras recordações sintéticas.

“Isso é muito Black Mirror”. Utilizar a Inteligência Artificial para fazer versões digitais de pessoas reais ou reviver memórias passadas poderia ser o mote de algum episódio do seriado que levou os dilemas tecnológicos à última potência. Poderia, se isso já não fosse uma realidade.

Hoje, projetos baseados em IA generativa já propõem criar “fotografias da memória” e até usar a tecnologia em tratamentos experimentais para pacientes com Alzheimer ou demência. Outras iniciativas, mais envoltas de polêmicas, focam no luto de pessoas que perderam entes queridos e buscam “revivê-los” de diversas formas digitais.

À medida que as possibilidades com a Inteligência Artificial se ampliam, cresce também a produção do que se pode chamar de recordações sintéticas. É hora de descobrir alguns destaques – e controvérsias – desse novo campo em que as inovações de IA já são vistas.

IA para reviver memórias e lembranças

Desde 2022, o projeto Synthetic Memories vem trabalhando em diversas frentes com um objetivo em comum: reconstruir lembranças visuais do passado por meio de entrevistas individualizadas e uso de IA. Segundo a iniciativa, as lembranças reconstruídas não buscam ser representações factuais, mas vetores de memória baseados no que as pessoas se lembram.

Isso possibilita que momentos especiais que ficaram eternizados apenas na cabeça sejam concretizados em “fotografias de memória”, que pareçam ter sido capturadas quando o evento aconteceu.

Com as lembranças coletadas, o projeto criou um arquivo de histórias e imagens equivalentes a elas. São recordações pessoais, de rituais, objetos e lugares importantes. Alguns exemplos são relatos como o de Raúl, que conseguiu seu primeiro emprego como imigrante entregando 30 rosas por dia e pôde reviver a época visualmente; ou de Marc, que tem uma afeição pelas viagens de carro não registradas com seu gato siamês; e ainda de Conxita, que viu transformada em imagem a primeira vez em que assistiu à televisão.

Além do apelo pessoal e emocional, o Synthetic Memories também colabora com comunidades cujas narrativas foram historicamente esquecidas, o que ajuda a visualizar realidades que nunca foram capturadas em câmeras ou ficaram perdidas com o tempo.

Terapias sobre memórias passadas

Com a colaboração de instituições como a Universidade de Toronto, Universidade Politécnica da Catalunha, Escola de Artes Visuais de Nova York e Elisava Escola de Design e Engenharia de Barcelona, o projeto Synthetic Memories propõe avaliar os vários impactos que a IA pode ter na reconstrução de lembranças, promovendo inovação responsável nesse campo emergente.

Com isso, algumas linhas de pesquisa têm o foco na utilização das memórias passadas revividas pela Inteligência Artificial na área da saúde, em especial em condições que afetam a cognição e a saúde mental.

Para a iniciativa, o tratamento da demência e do Alzheimer, por exemplo, tem um dos maiores potenciais de se beneficiar com a aplicação das memórias sintéticas, não como uma cura, mas como uma ferramenta de terapia. Já os impactos nos tratamentos psicológicos podem envolver a possibilidade de evocar sentimentos de nostalgia, a ajuda no processo de cura do luto ou de experiências traumáticas e a contribuição para a sensação de bem-estar do indivíduo.

IA para rever e interagir com entes já falecidos

Em 2023, um comercial comemorativo dos 70 anos da Volkswagen “reviveu”, por meio de IA, a cantora Elis Regina, causando comoção e debates vívidos na rede – a cantora faleceu ainda na década de 1980 e, na peça publicitária, aparecia ao lado de sua filha, Maria Rita.

O processo para a criação do comercial levou meses. A IA utilizada pela agência AlmapBBDO, responsável pela produção, precisou mapear milhares de fotos e vídeos da artista. Depois, o banco de dados foi aplicado sobre a imagem de uma atriz real, que participou das filmagens, mas ganhou as feições e o rosto de Elis graças à tecnologia.

Se trazer uma figura famosa de volta para uma “participação especial” já foi alvo de controversas, a aplicação da Inteligência Artificial para não deixar memórias passadas morrerem parece já ter avançado mais passos. Agora, ela também já está sendo usada para reviver digitalmente pessoas falecidas e possibilitar até a interação com elas. Novidades neste sentido não param de aparecer.

Desenvolvido por um programador independente, o Project December, por exemplo, se baseou nos modelos de linguagem GPT-2 e GPT-3 para criar um chatbot que, ao ser treinado pelo usuário, gera respostas em forma de texto de forma personalizada.

Por meio do aprendizado de máquina, ele incorpora maneiras de falar, gramática, trejeitos, personalidade e modos de conduzir uma conversa de qualquer pessoa, inclusive alguém falecido. Isso faz com que o app consiga simular interações com quem já se foi.

Por sua vez, a empresa chinesa Super Brain parece ter descoberto um nicho de mercado ao criar versões digitais de pessoas falecidas, os chamados clones, utilizando IA. Segundo seu criador, Zhang Zewe, a companhia já recebeu milhares de pedidos de famílias que desejam acessar esses serviços e rever, nem que seja por uma tela, algum ente querido.

Assim como no processo utilizado no comercial com Elis Regina, a Super Brain alimenta a Inteligência Artificial com fotos e vídeos da pessoa. Isso permite que a tecnologia reproduza não só a imagem, mas também a voz e o comportamento de quem foi clonado.

“Tech do luto” e os dilemas éticos

Outros aplicativos que revivem memórias passadas e são de uso razoavelmente fácil podem ser encontrados no mercado. É o caso do HereAfter, no qual os usuários podem gravar lembranças em áudio, que posteriormente são utilizados para criar um sósia virtual que reconta essas histórias; e do StoryFile, que permite conversas em vídeo com pessoas já falecidas que disponibilizaram material para seu banco de dados.

Essa proliferação de alternativas vem formando o que especialistas têm batizado de “tech do luto”, setor que só tende a crescer. Isso abre margem para discussões éticas, relacionadas desde a privacidade dos dados a autorizações necessárias para a recriação de clones digitais.

Prevendo esses impasses, o projeto Synthetic Memories conta com uma linha de pesquisa voltada às questões éticas que se implicam nesse campo tão recente, demonstrando preocupação quanto a prevenção de distorções históricas, transparência e privacidade, desafios legais e, por que não, limites do uso desses recursos.

*Foto gerada com DALL·E.

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