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Quando boa gestão aposta em tecnologia ruim: o paradoxo da inovação

Quando boa gestão aposta em tecnologia ruim: o paradoxo da inovação

Decisões aparentemente eficientes podem levar a criação e adoção de tecnologias prejudiciais. Mas quantas empresas têm esse conhecimento?

A tecnologia deveria nos tornar mais conectados, produtivos e seguros. Essa é a sua promessa e sua razão de existência. No entanto, na última década, assistimos ao crescimento de produtos digitais que, em alguns casos melhoraram nossas vidas, mas em vários outros, amplificaram divisões sociais, criaram novos riscos e corroeram o bem-estar coletivo.

No SXSW 2025, Darryl Campbell, fundador da 75south Consulting e veterano de Big Techs, explora um paradoxo inquietante: Por que a boa gestão empresarial, focada em eficiência e crescimento, muitas vezes aposta em tecnologia ruim para os negócios e para a sociedade?

O executivo apresentou alguns dos maiores desastres tecnológicos dos últimos anos para revelar como métricas de sucesso corporativo nem sempre se alinham com impactos positivos para usuários e comunidades. Por isso, Campbell propõe um caminho alternativo, no qual engenheiros, arquitetos e gerentes de produto — aqueles mais próximos da tecnologia — tenham mais poder para evitar deslizes rumo a uma distopia digital. Afinal, será que podemos repensar a inovação para que ela funcione em favor das pessoas, dos clientes e não apenas dos resultados financeiros? 

Darryl é autor do livro “Fatal abstraction: why the managerial class loses control of software” (“Abstração fatal: por que os executivos perdem o controle do software”, em tradução livre para o português). De acordo com sua tese, os executivos sempre sacrificam a segurança para impulsionar os lucros, sem considerar os impactos que tecnologias mal concebidas podem trazer no médio prazo. 

De maneira original, Darryl propõe olhar para o lado “abstrato” das métricas financeiras. Os “valuations” trazem, atualmente, métricas excêntricas que geram valores esotéricos, sem respaldo na realidade, considerando produtividade, vendas, custos e lucros.

Segundo a Lei de Goodhart, “quando a medida se torna o alvo, deixa de ser uma boa medida”. Se para o lendário Milton Friedman, “a única responsabilidade social de uma empresa é engajar recursos e atividades para aumentar lucros”, esse conceito ainda inspira a visão dos líderes, mas de um ponto de vista distorcido. É como se o “software” da economia estivesse desregulado e levasse as empresas e os analistas a dobrarem a aposta em avaliações abstratas.

Por outro ângulo, surge uma questão pertinente: toda a ciência da gestão que levou os EUA a vencerem a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, traz respostas para um novo panorama de economia digital? Estamos diante de avaliações de responsabilidades ou externalidades? O que influencia mais nossas decisões e pressupostos? 

Má tecnologia pode tornar um negócio irreconhecível 

Em termos simples: as grandes companhias de tabaco eram conhecidas pela especialização nos cigarros, assim como as empresas de eletroeletrônicos e as montadoras, cada qual com produtos específicos. Mas, vejamos, as Big Techs são conhecidas exatamente por quais produtos? Como você define o que elas fazem?

O modelo das Big Techs, baseado na produtividade desmedida e na pressão exacerbada por custos menores e a busca por resultados financeiros expressivos, levou empresas tradicionais e reconhecidas pelo zelo com qualidade a subverterem os próprios códigos de eficiência, incorporando tecnologias deficientes e inconsistentes, que, por sua vez, abalaram a qualidade e a confiança dos consumidores.

“Bom, rápido e barato”, é o mantra na catedral da eficiência. E no altar dessa busca pela elevação dos negócios a resultados divinos, encontramos os softwares, como a panaceia capaz de tornar empresas tradicionais, a um clique apenas, mais leves e eficazes, produtivas e geradoras de valor — como são as Big Techs. Um engano que as leva a se tornarem irreconhecíveis e dissociadas de seu legado.

O desastre da Boeing

Darryl Campbell trouxe, como exemplo, o case da Boeing. Outrora admirada como modelo absoluto de qualidade impecável, atualmente, a empresa de Seattle sofre reparando os problemas derivados da contratação de tecnologias deficientes. 

O fato é que softwares supostamente “poderosos” impactaram seu processo de produção e estão na raiz dos problemas e incidentes dos aviões da Família 737-800 Max. A Boeing reduziu a força de trabalho, os investimentos em P&D, trocou fornecedores e obrigou os engenheiros a só tomarem decisões justificadas financeiramente.

Isso levou a empresa a abstrair completamente a realidade do seu negócio em favor de um “financismo” inconsequente. Os engenheiros, porém, sabiam que não havia como prolongar a vida útil de um projeto datado de 1964. Quando o primeiro avião da série Max caiu, a reação da liderança foi previsível: “fatalidade”. Era preciso proteger a empresa em detrimento da proteção dos passageiros.

Assim, para preservar margens e os ganhos financeiros contidos no projeto “Max”, a Boeing dobrou a aposta no poder da tecnologia que promete redimensionar a habilidade de reduzir custos. Não por acaso, os engenheiros devotos dos softwares diziam que a chance de outro acidente acontecer no espaço de 6 meses, seria inferior a 1%. 

Mas aconteceu. Após os acidentes e incidentes em série, a análise de projeto revelou falhas absurdas ignoradas pelos softwares. A pressão pela adoção de tecnologia ruim resultou no cancelamento de pedidos por novos aviões, um prejuízo no valor estratosférico de US$ 60 bilhões, fora indenizações e problemas regulatórios. O clássico do “barato que saiu caro”.

Do ar para as ruas

O desastre (literal e financeiro) da Boeing acontece o tempo todo. Vejamos outro exemplo: o projeto de “carro autônomo” da Uber. Há cerca de 10 anos, muito dinheiro foi investido pela empresa na crença de que a direção autônoma seria a redenção de um negócio que perdia dinheiro remunerando os motoristas associados.

Mas, para todos os efeitos, o carro autônomo continua uma aposta tão incerta, duvidosa e cara como era há 10 anos, quando o então CEO e fundador, Travis Kalanick, divulgou sua “visão”.

A tecnologia utilizada nos projetos da Uber era rudimentar e ruim. Os testes mostraram falhas absurdas de cálculo de velocidade dos automóveis diante de situações comuns no tráfego urbano. Os carros, por exemplo, eram incapazes de reduzir a velocidade e acionar freios em situações nas quais haveria colisão iminente com um ciclista. 

A pressão financeira e a necessidade de manter o “valuation” em níveis esotéricos obrigou a Uber a tentar ser lucrativa rápido demais. A história mostra que essa pressão a levou a adotar tecnologias ruins, que colocavam a vida de passageiros e pedestres em risco permanente.

A busca pelos bônus milionários normalmente estimula os executivos a serem negligentes tecnicamente, confrontando os reguladores e a adotando toda sorte de promessas desarticuladas que levem a aquisição de tecnologia ruim.

Como evitar a armadilha da tecnologia ruim?

Darryl enfatiza que as empresas devem estabelecer uma governança severa sobre a adoção de tecnologias que prometem muito além do que podem cumprir. É sempre bom resguardar a empresa da armadilha de usar uma tecnologia que quebre os códigos e valores que a conduziram até o presente.

A tecnologia não pode fazer parte da corrida pelo lucro artificial e pelos resultados que têm respaldo na realidade. As empresas devem zelar pelos produtos que oferecem, e não sacrificar sua qualidade a partir de softwares incapazes de gerar os resultados, ganhos de escala e produtividade que prometem.

Estabelecer critérios qualificados na contratação de tecnologia e criar um saudável ceticismo sobre o valor que ela é capaz de entregar, é uma forma de criar anticorpos que protejam o organismo, o negócio de decisões impensadas. 

Quando trazemos a questão para a experiência do cliente, basta lembrar de quantas tecnologias e sistemas foram essencialmente saudados como instrumentos “revolucionários” para gerar valor, interação e engajamento: CRM, Big Data, bots, chatbots, omnicanalidade e agora, mais recentemente, a Inteligência Artificial. Os resultados, vistos com a lente ajustada do tempo e da experiência, são controversos e desiguais.

Essa é a consequência de uma cultura desajustada do que o negócio, seus produtos, serviços e marcas representam. Ao mesmo tempo, o ceticismo absoluto com relação à adoção de tecnologia torna a empresa obsoleta mais rapidamente.

O ponto de equilíbrio depende de gestores com maturidade para definir qual o papel da tecnologia no negócio e quais os ganhos localizados que ela deve trazer, para que se somem e colaborem na construção de uma organização eficiente e perene. Não há espaço para a arrogância quando a vida das pessoas, os legados e sonhos dos empreendedores e dos consumidores podem ser vitimados por péssimas escolhas.

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