Uma frase de Pedro Malan revela de modo preciso o caráter volátil da nossa visão de mundo: “No Brasil, até o passado é incerto”. O economista, longevo Ministro da Fazenda durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), fazia referência às diversas questões legislativas em aberto que impunham práticas tácitas durante anos, até mesmo décadas, e então, repentinamente eram modificadas ou rearranjadas pelo Judiciário, sem nenhum respeito por contratos firmados.
Ao mesmo tempo, o Brasil sempre foi visto como “o país do futuro”, uma promessa de grandeza que aplacava a nossa miséria no presente. Em algum ponto de nossa história, o Brasil atingiria tal grau de desenvolvimento econômico e social que seria um exemplo do melhor futuro possível sonhado para a raça humana.
Nos últimos tempos, contudo, o país do futuro se encontrou com o país de passado incerto. O resultado foi e continua sendo perturbador. Polarização, guerra cultural, pandemia e governos ineptos, contrapõem-se à uma sociedade que abraçou o digital desde o primeiro e-mail enviado, com um mercado interno vigoroso, um ecossistema de startups que ganha vibração, e um setor privado que procura conduzir o país adiante, mesmo de forma errática e mantendo proximidade demasiada com políticos de plantão. O choque entre a trilha da modernidade e o apego ao passado foi devastador. Hoje, é difícil não encontrar alguém que não sinta um travo na garganta diante do futuro. A disrupção que atinge negócios em todos os setores agora desconstrói nossas expectativas. O futuro não importa mais: somente o hoje, o agora, o já, sem temperança ou ponderação. Esse dia depois do amanhã não traz nenhuma ideia pela qual valha a pena esperar, ao contrário, somente mostrará como o Brasil adora perpetuar seus vícios e falhas.
O comportamento de grande parte de cidadãos diante da pandemia é também revelador dessa urgência diante do agora e da negligência diante do futuro. À parte sermos um país de renda medíocre, a pouca adesão a seguros, investimentos, poupança, a precipitação com que lançamos “candidatos a candidatos”, e também como não soubemos nos resguardar diante de um vírus de notável velocidade de contágio, escancaram o quanto falhamos como sociedade. Pessoas correram riscos, se rejubilaram em festas e convescotes clandestinos para “curtir” o hoje, uma vez que o amanhã ficou longe demais.
O fim dos objetivos
Quais as expectativas para o Brasil nos próximos anos? Alguém se arrisca a responder? Em que patamar de carreira você estará daqui a 5 anos? O comportamento do consumidor será realmente mais intensamente digital no futuro próximo? Saúde e bem-estar são realmente importantes de agora em diante? Qual o futuro das crianças alijadas do convívio escolar? Que tipo de relações interpessoais irão desenvolver? E as empresas, irão retomar rotinas presenciais e se adaptar a formatos híbridos de consumo? Fundamentalmente, podemos confiar que o Brasil terá governos sensatos para promover reformas consistentes e nos conduzir ao crescimento sustentado em algum momento?
São perguntas que geram mais perguntas, nos confinando a um looping interminável. Toda a discussão em torno dessas questões gera apenas narrativas que opõe idealistas de várias matizes, descolados da realidade de quem sofre do estresse do home office e de quem se expõe, dia após dia, no transporte público para comparecer ao trabalho que suporta aqueles que podem ficar em casa.
Quando não conseguimos projetar um futuro, as expectativas deixam de fazer sentido. Hoje, o brasileiro, cidadão, consumidor, pai/mãe de família e profissional só pode se permitir viver um dia depois do outro, ansiando por um momento no qual seja possível planejar, acreditar, buscar e atingir. Os objetivos tornaram-se apenas esperanças de que um dia possam cumprir sua função.
O futuro tornou-se gasoso, uma abstração ainda mais vaporosa, insípido, inodoro, incolor, sem permitir que possamos nos sentir motivados a enfrentá-lo. Estamos mais perto do passado, considerando as ideias, discursos e atitudes dos grupos barulhentos nos extremos, do que capazes de caminhar no rumo do futuro.
Há esperança?
E qual a solução para enfrentar a disrupção das expectativas? É necessário romper com as bolhas cognitivas, o viés de confirmação, o esforço consumido com paixões e adesões políticas irracionais, guerras culturais e outros fantasmas. As narrativas que invadem redes sociais impedem o exercício do contraditório, o respeito à opinião e diluem o futuro em torno da validação de verdades absolutas. O amanhã só se concretizaria, na visão dos áulicos do radicalismo ressentido, com a supressão de perigos oriundos de comportamentos e ideias que não se “encaixam” em molduras preconcebidas. Ou seja, o futuro deu lugar à anulação de significados.
O Brasil necessita urgentemente de um projeto, de objetivos e de um moonshot que galvanize atenções, competências e talentos. O que queremos, afinal, como Nação? Defender um ideal de “liberdade” ou de “justiça social” nada mais é do que afirmar platitudes. Queremos um país que seja líder em commodities, que tenha uma indústria 4.0, que seja o paraíso das fintechs, o maior ecossistema de health techs ou o celeiro de exploradores espaciais, seja lá o que for, é necessário definir um objetivo que nos leve a algum futuro.
De tanto que gostamos de mudar o passado, reescrevendo os fatos, perdemos os elementos que possam dar sentido e valor ao nosso tempo. E é onde estamos agora, presos na memória e na angústia do que queremos ser, sem direito a fazer das expectativas um momento de realização pessoal e coletiva.
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