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O papel da IA no consumo: mocinha ou vilã?

O papel da IA no consumo: mocinha ou vilã?

Para sócia do Machado Meyer, adoção da tecnologia é mais uma fase da revolução digital em rápido desenvolvimento, apesar de riscos.
Kristalina Georgieva, diretora-geral do Fundo Monetário Internacional.

A Inteligência Artificial (IA), está cada vez mais discutida e inserida nas nossas vidas. E não é para menos, afinal, a exemplo do ChatGPT e da onda de aplicativos, ela vem sendo útil na automatização de tarefas, identificação de fraudes e personalização de experiências.

Por outro lado, nem tudo são flores neste cenário. E tem quem diga que a IA traz consigo alguns perigos significativos – desde as questões de segurança e privacidade até a perda de postos de trabalho. Nesse ínterim, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, a própria diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva afirmou que 40% dos empregos mundiais serão afetados. “E isso será de quando mais qualificado for o emprego. Portanto, para as economias avançadas e alguns países emergentes, 60% dos empregos serão afetados”.

Para dar essa declaração, Kristalina se baseou no Relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI). E, em suas palavras, “ao mesmo tempo que a IA parece ser assustadora, ela também pode ser uma excelente oportunidade”.

Mas, engana-se quem pensa que os malefícios estão só nas perdas de trabalho. Não!

IA e DeepFakes

Os deepfakes, por exemplo, contribuem para a manipulação da opinião pública e a disseminação de informações falsas.

Outra lacuna é a falta de transparência em sistemas de IA, a qual vem levantando preocupações sobre como as decisões são tomadas pelos algoritmos de IA e sobre a possibilidade de viés indesejados.

Além disso, a privacidade e segurança dos dados utilizados nos sistemas de IA também são questões de grande importância, uma vez que a coleta e o processamento dessas informações sensíveis podem acarretar riscos significativos para os usuários. Só para exemplificar, podemos citar aqui o processo de recrutamento e seleção feito em plataformas que realizam a triagem de candidatos por IA.

Decisões na IA

Isso porque, se os modelos de IA não estiverem devidamente alicerçados em dados confiáveis e informações robustas, o sistema tomará decisões incorretas. A consequência será a fragilidade ou a manipulação, promovendo comportamentos tendenciosos ou preconceituosos.

Contudo, tem um ditado popular que diz assim: “tudo na vida sempre tem um lado bom e um lado ruim; cabe a nós escolher para qual deles irá olhar”. Será que esse ditado vale também para a IA? E quais os reais impactos da Inteligência Artificial no consumo? Será que a IA tem mesmo o poder de decidir a compra de nós, consumidores? E as empresas, através dos aplicativos, será que estão utilizando a IA para personalizar ou massificar a experiência do cliente?

Assim, no sentido de responder essas e outras perguntas e de promover uma conscientização sobre as implicações legais, éticas e sociais da tecnologia, é que a Consumidor Moderno entrevistou a sócia da área Direito das Relações de Consumo do Machado Meyer, Thais Matallo Cordeiro.

Thais é reconhecida como Chambers & Partners Brazil: Direito do Consumidor (2021-2024) e atua como conselheira do Instituto Brasileiro de Defesa da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac).

Riscos x Benefícios da IA

Confira abaixo na íntegra a entrevista exclusiva:

Thais Matallo Cordeiro, sócia da área de Direito das Relações de Consumo do Machado Meyer.
CM: Entre os riscos da IA nas relações de consumo, destaque para preconceito e discriminação; preocupações com a privacidade; dilemas éticos; e riscos de segurança. Você concorda com esses pontos?

Como toda inovação tecnológica, o uso da IA levanta preocupações éticas fundamentais, mas seus benefícios concretos certamente superam eventuais malefícios. Tal como ocorreu com o advento e do domínio da internet em diversos aspectos da vida diária, é comum que a utilização de novas tecnologias provoque discussões, que se relacionam diretamente à dificuldade de lidar com algo que é desconhecido e que não conta com profunda regulamentação. Não obstante, os dados e a sua utilização por sistemas de Inteligência Artificial já fazem parte da vida moderna, constituindo mais uma fase da chamada “revolução digital” que, diferente das outras revoluções experimentadas pela humanidade, tende a se desenvolver de forma muito mais veloz. A internet chegou ao Brasil há 36 anos, e atualmente, para a grande maioria dos brasileiros, é impossível imaginar uma vida desconectada. A Inteligência Artificial busca trilhar o mesmo caminho.

CM: Qual sua visão sobre os esforços para regulamentar a IA no Brasil?

Existem diversos esforços para disciplinar a matéria, coibindo eventuais abusos e buscando soluções para dilemas éticos. Conforme levantamento recente realizado pela CNN, existem cerca de 34 projetos de lei na Câmara dos Deputados e outros 12 no Senado, de forma que o Brasil está cada vez mais próximo de impor diretrizes ao uso dos sistemas de Inteligência Artificial, o que não só diminuirá os riscos oferecidos aos usuários, mas também permitirá o pleno desenvolvimento de tais sistemas em âmbito nacional.

Esse aspecto é fundamental, dado que a Inteligência Artificial já é uma realidade mundial. Utilizando o mesmo exemplo da internet, é um processo que se assemelha à elaboração do Marco Civil da Internet, que visava justamente disciplinar o uso da internet no Brasil (que também pode ser nocivo, mas traz benefícios indiscutíveis).

CM: Muitas empresas estão migrando seus canais de comunicação com o consumidor para aplicativos de IA. Como você enxerga essa tendência?

O Decreto nº. 11.034/2022 buscou regulamentar o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), estabelecendo diretrizes e normas que, no caso, são obrigatórias apenas para empresas fornecedoras de serviços regulados pelo Poder Executivo federal (como bancos, empresas de telefonia e telecomunicações, energia, água e saúde suplementar – serviços sensíveis do ponto de vista das relações de consumo), mas apresentam, de toda forma, parâmetros que são seguidos no atendimento ao cliente pelas principais empresas que operam no Brasil.

Neste sentido, os artigos 4º e 5º do Decreto estabelecem que o SAC deverá operar por meio de canais de atendimento integrados, sendo obrigatório oferecer o atendimento telefônico em período não inferior a oito horas diárias.

Ou seja, o serviço de SAC via aplicativo pode ser uma das formas de atendimento ao consumidor em meio a outros canais de comunicação à sua escolha, os quais visam, justamente, garantir que o consumidor possa ser atendido todos os dias e em qualquer horário, da forma que melhor lhe aprouver. Assim, via de regra, é recomendável que as empresas possam oferecer aos consumidores outras opções para além do aplicativo (como telefone ou e-mail).

CM: Qual sua recomendação para as empresas, para que não venham a ter problemas com consumidores por falhas de atendimento?

Um fator fundamental nesse cenário é que as empresas deixem instruções claras e objetivas a respeito do acesso ao SAC e quais são as alternativas oferecidas ao consumidor que busca contatá-las, para que todas as ferramentas criadas possam ser utilizadas a favor dos interesses do consumidor, e não em sentido contrário.

Vale destacar, também, que no relatório preparado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), em 2023, apenas 2,75% dos problemas reportados pelos consumidores correspondem a dificuldades com SAC (nas hipóteses de demanda não resolvida, não respondida ou respondida após o prazo). Ainda que todas as reclamações fossem motivadas pelo uso de aplicativos para atendimento ao cliente (o que parece improvável) o percentual pequeno em face dos demais problemas existentes nas relações de consumo demonstra que essa questão não afeta de forma significativa a relação entre os consumidores e as empresas.

CM: Quais são os obstáculos que as empresas devem superar para oferecer um atendimento de qualidade e humanizado através de canais de IA?

A utilização de aplicativos, apesar de trazer novos desafios às relações de consumo, também tem inegáveis benefícios. A fim de garanti-los, é essencial que as empresas assegurem acessibilidade, transparência, proteção de dados pessoais, dentre outras questões de grande impacto ao consumidor, justamente para garantir a observância de seus direitos básicos e a harmonia das relações de consumo.

Além disso, conforme colocado anteriormente, a realidade atual do mercado se volta à manipulação de dados e ferramentas relacionadas. Juntas, elas influenciam toda a cadeia de produção e, como não pode deixar de ser, as relações entre fornecedores e consumidores. Para os fornecedores, além da necessidade de se adaptar a essa nova realidade mercadológica para manter-se competitivo, o próprio consumidor busca alternativas digitais. Isso porque essas alternativas oferecem facilidades ao toque de uma tela.

Só para exemplificar como o perfil do consumidor tem mudado para se alterar à realidade da tecnologia. Foi realizada uma pesquisa pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e pelo portal de educação financeira “Meu Bolso Feliz”. Esse levantamento explicita que nove de cada 10 consumidores com acesso à internet fazem pesquisas online antes de realizar compras em lojas físicas.

CM: Isso significa que o processo de compra passou a levar em conta a avaliação de outros consumidores?

Exato. E tal realidade revela o potencial dos aplicativos. Neles, os consumidores podem avaliar e emitir opiniões sobre produtos e/ou serviços de forma pública e isenta. E, com isso, é facilitada a tomada de decisão dos demais consumidores que buscam fazer uma boa escolha e minimizar suas chances de ter problema. Esse é apenas um dentre diversos exemplos que a pesquisa trouxe acerca dos novos espaços que estão sendo ocupados pelos aplicativos nas relações de consumo.

Logo, é necessário colocar-se em perspectiva que mais acesso deve implicar em mais serviços a serem usufruídos pelo consumidor. De forma que o uso de tecnologias, quando benéficas, certamente deve ser incentivado. Ainda que a empresa ofereça alternativas à população que não tem acesso aao digital, é importante que fornecedores e poder público trabalhem em conjunto. Tal iniciativa deve buscar a integração dessa parcela excluída da população aos novos serviços oferecidos, o que pode trazer benefícios a todas as partes envolvidas.

CM: No Brasil, dados da última Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), do IBGE, mostram que 28 milhões de pessoas vivem no apartheid digital. Isso quer dizer que uma população equivalente à do Paraguai, Uruguai e Chile, somadas não possui conectividade. Isso pode prejudicar as relações de consumo?

Em uma sociedade cada vez mais conectada, a ausência de acesso à internet e tecnologias tem o condão de dificultar qualquer tipo de relação. Isso vale também para as relações consumeristas, óbvio. É nesse ponto que vemos a importância de as empresas utilizarem canais de atendimento integrados, com alternativas que não impliquem o uso de meios digitais.

Ao mesmo tempo, para o consumidor moderno, como já dissemos, a tecnologia vem se tornando um aspecto fundamental do processo de compra. A pesquisa realizada pelo SPC e pelo “Meu Bolso Feliz” concluiu que 85% dos entrevistados acreditam que os melhores preços estão nas lojas virtuais. Já 83% acham que elas oferecem maior comodidade e menor esforço/desgaste para escolher um produto. Precipuamente, o levantamento comparou os atributos de lojas virtuais e das físicas na realização de uma compra.

CM: Quais as tendências para o futuro não muito distante?

É impossível que as empresas ignorem a relevância atual do mercado digital. E, por consequência, é esperado que a adoção de tecnologias nas relações de consumo aumente significativamente nos próximos anos. Isso vale, inclusive, para o próprio atendimento ao cliente. Contudo, vale destacar que essa utilização cada vez mais recorrente de alternativas digitais não é exclusiva do mercado de consumo. De forma que, para além dos fornecedores, esse cenário implica em desafios que deverão ser enfrentados pela sociedade como um todo. Para supera-los é necessário uma força-tarefa com o auxílio do poder público. O ideal é trabalharmos para a implementação de medidas que observem desde os seus cidadãos mais vulneráveis aos mais conectados.

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