A ampliação do conhecimento sobre o efeito das telas na vida das crianças tem feito com que, cada vez mais, os pais coloquem limites no uso dos mais variados aparelhos – desde a televisão e até o smartphone, passando pelo bom e tão divertido videogame. Tal controle é justo e prudente, afinal, os gadgets deixam as crianças absolutamente vidradas. Mas será que isso vale só para as crianças? E quanto aos adultos, que não nasceram com acesso aos celulares, mas se tornaram outras pessoas a partir do momento em que passaram a utilizá-los e conheceram os prazeres da conectividade?
O excesso de uso de telas pode ser prejudicial para todas as idades. Prova disso é o que a psiquiatra Anna Lembke explica no livro Nação Dopamina: o excesso de prazer pode levar à infelicidade. Parece contraditório, mas ela explica: a dopamina, conhecida como um dos hormônios da felicidade, é liberada no cérebro quando se atinge um objetivo – inclusive ao visualizar, por exemplo, algo que consideramos agradável. Encontrar uma promoção de algo de que precisamos pode gerar a liberação de dopamina, bem como finalizar um projeto que exigiu muitas horas de trabalho ou até mesmo uma curtida na rede social. E é aí que mora o perigo.
Viver muitas situações que provocam a liberação de dopamina torna o cérebro tolerante – ou seja, acostumado a essa sensação e à essa substância. O que era excepcional passa ser costumeiro e, consequentemente, o prazer fica mais difícil de ser experimentado. Anna Lembke usa exemplos de pacientes viciados em substâncias e comportamentos de risco para explicar esse processo: desde a pornografia até o fentanil, tudo o que é usado para obter prazer imediato pode, sim, tornar-se um vício. O mesmo vale para o uso de gadgets.
Talvez você não tenha percebido, mas já deve ter sentido frustração ao não encontrar um post agradável (ou seja, alinhado com o que você consciente ou inconscientemente procura) ao rolar o feed do Instagram. Da mesma maneira, pode ser frustrante não receber uma mensagem do “crush”, não das matchs no Tinder ou até mesmo não ter resposta para um e-mail enviado. No âmbito do consumo, ter uma compra recusada no cartão de crédito pode destruir o humor, assim como vivenciar o atraso de uma entrega, por exemplo.
O prazer acima dos critérios racionais
Com tantos estímulos e experiências que geram prazer disponíveis, passamos a ser pessoas imediatistas e exigentes. O problema é que o que realmente cresceu não foi a régua da qualidade, mas a do prazer. A entrega de um produto de pouca durabilidade, em muitos casos, traz tanta alegria quanto aqueles que duram “para sempre”. É por isso, por exemplo, que há uma quantidade imensa de pessoas viciadas em pequenas compras em sites como Shopee e SHEIN: não importa o que se compra, mas o prazer de colocar a compra no carrinho e finalizá-la.
A essa situação foram dados nomes bonitos – como “a Economia da Atenção”. Assim, as empresas entendem que disputam, basicamente, a capacidade de fazer o consumidor dedicar alguns minutos de foco a elas. Com isso, quem sabe, torna-se possível fazem uma venda. Entretanto, ao contrário do que pode parecer, o que está em jogo nessa batalha não é apenas a qualidade do produto ou do serviço, mas o prazer que ele gera.
O consumo atrelado ao prazer não é novidade
Assim nasceram grandes marcas e grandes estratégias. Prova disso é que a Coca-Cola não é só um refrigerante, mas uma forma de abrir a felicidade – e isso não é uma crítica, afinal, eu abro a minha felicidade todos os dias (te amo, Coquita!). Uso esse exemplo porque admiro e até reverencio a forma como essa marca incrível (na minha opinião, imbatível) se transformou ao longo das décadas, mudando a forma como encanta a partir de outros mecanismos que vão além do consumo propriamente dito.
Indo além desse clássico, pode-se pensar, por exemplo, no prazer gerado pela “compra a partir de um único clique” – experiência criada pela maravilhosa Amazon –, ou nas embalagens cuidadosamente pensadas pela Apple, que oferecem prazer a cada etapa da aquisição de um novo produto. Inclusive, a possibilidade de fazer downloads de apps – e suas atualizações frequentes – faz com que os estímulos sejam recorrentes, ou seja, o produto só termina quando acaba (quis usar essa expressão apenas para me divertir, mas, na prática, quero dizer que o produto realmente termina quando para de ser possível atualizá-lo – e esse dia demora para chegar!).
A mesma receita vale para todos?
Tendo isso em vista, parece simples conquistar o consumidor: basta tornar tudo colorido, cheiroso, saboroso e, de preferência, utilizar recursos capazes de acionar mecanismos de prazer – como o açúcar. Isso pode funcionar, é claro. Mas, por mais que grande parte dos consumidores sejam suscetíveis a tais estratégias, existem variáveis que precisam ser levadas em consideração. Menciono duas delas.
1. Renda
De acordo com um levantamento feito pelo economista Bruno Imaizumi, da LCA Consultores, com base em microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), no segundo trimestre de 2023, cerca de 35,6 milhões de trabalhadores (formais e informais) receberam, mensalmente, apenas um salário mínimo, ou seja, R$ 1.212. O número corresponde a 36,6% da população ocupada. Quem faz compras no supermercado sabe que esse valor, no bom e velho português, “não dá nem pro cheiro”.
O prazer desse cidadão, então, pode estar muito mais em uma promoção honesta do açougue do que no recurso de “compra por um clique”. A realização de um sonho, para ele, pode estar muito mais nas promoções das agências de turismo e nos descontos de Black Friday de empresas que não praticam “a metade do dobro” – me poupem, poupem a Consumidor Moderno, estamos de olho!
Diante disso, uma estratégia de preços pode funcionar melhor (e ser mais honesta) do que apenas tornar a loja mais agradável sensorialmente, por exemplo. E o sucesso do Assaí não me deixa mentir: não por acaso, esse atacarejo foi reconhecido entre as Empresas que Mais Respeitam o Consumidor em 2022.
2. Acesso à informação
A mesma internet que torna o consumidor dopado de dopamina (risos) é a que deu acesso e visibilidade a fatores sociais e ambientais que convidam a um consumo mais consciente. Tal conhecimento leva grande parte dos consumidores a escolher marcas que preservam o meio ambiente e o contexto em que estão inseridas. Prova disso é que, de acordo com um estudo da Opinion Box, 67% dos consumidores buscam conhecer as práticas ESG de uma empresa antes de consumir. Nesse caso, mais do que a facilidade em consumir, encontrar uma marca que corresponda aos próprios valores pode gerar uma sensação e um sentimento de prazer no cliente.
Inclusive, faz realmente pouco tempo que o público vegano e vegetariano passou a ser realmente considerado pelas empresas como digno de ter seus próprios produtos – e isso com certeza gerou muita felicidade. A Notco e a Fazenda do Futuro, por exemplo, trouxeram facilidade ao cotidiano de quem quer viver sem consumir produtos de origem animal mas precisa de conveniência e rapidez.
Respeito é a resposta
Diante desses dois destaques, o ponto é: nem todo cliente vai ficar feliz com as mesmas estratégias ou com os mesmos estímulos. Ainda que grande parte da humanidade esteja viciada em dopamina (e isso mereça, sim, uma reflexão como sociedade e como indivíduos), para conquistar o prazer e o encanto do cliente é preciso, primeiro, conhecer o contexto dele e quais soluções (seja preço, seja sustentabilidade ou até experiências sensoriais) vão preencher lacunas na vida dele.
Assim, chego ao conceito central da edição da Consumidor Moderno que encerra 2022: o respeito. Não importa se o consumidor é flamenguista, corintiano, palmeirense, santista, hétero, transexual, de esquerda ou de direita, juiz ou se sobrevive com um salário-mínimo. O único caminho viável para conquistá-lo, gerar encantamento, ganhar a preferência e ser um atalho para experiências prazerosas é conhecê-lo para além dos rótulos e respeitá-lo por quem ele é.
Isso envolve ter a consciência de que, para além de todo título ou classificação, existem motivações, histórias de vida, sonhos, tradições e, é claro, traumas. Por trás de todo CPF existe um ser humano com uma trajetória. E é esse indivíduo que as empresas, a partir de seus tão minuciosos dados, devem encantar. Assim, organizações podem ser verdadeiros agentes de transformação da sociedade – mais do que CNPJs em busca de um belo relatório anual para investidores.
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