No Brasil, os acidentes de trânsito são uma preocupação constante. O número já alarmante de mortos e feridos, ano a ano, só aumenta. Para se ter uma ideia, em 2023, foram registradas 34.881 mortes em acidentes de trânsito terrestre. Esse é o número exato da população da cidade de Ituiutaba, um município no Triângulo Mineiro. Essa é uma questão bastante relevante e complexa, especialmente diante do crescimento do uso de aplicativos de transporte no Brasil – e da tentativa de regulamentar ou proibir serviços como o mototáxi em grandes cidades, como São Paulo, por exemplo.
De acordo com o Atlas da Violência 2025, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sistema de transporte no Brasil apresenta uma elevada taxa de mortalidade, que se aproxima do número de mortes violentas intencionais. Veja abaixo o gráfico ano a ano:
Portanto, o número de acidentes de trânsito levanta a seguinte questão: como fica o direito do usuário de transporte aplicativo que sofre um acidente?
Transporte por app: relação de consumo
Importante salientar que o passageiro de transporte de aplicativo é considerado consumidor. Portanto, o serviço de transporte é uma relação de consumo, regida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Assim, o passageiro tem direito à reparação integral dos danos, materiais e morais, inclusive nos casos de:
- Lesões corporais: com direito à indenização por despesas médicas, lucros cessantes, danos morais e estéticos;
- Morte: com direito à indenização por danos morais aos familiares, além de pensão para dependentes.
Quem explica melhor é o especialista em Defesa do Consumidor Stéfano Ferri, membro da Comissão de Direito Civil da OAB – Campinas e assessor da 6ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP. “O CDC, no artigo 14, estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor por falha na prestação do serviço. Isso significa que não é necessário provar culpa, apenas o dano, o nexo de causalidade e o defeito do serviço.”
Responsabilidade do app de transporte
Nesse caso, a responsabilidade em um acidente é do motorista ou da plataforma?
Isso depende da forma como ela se apresenta ao consumidor. Aqui entram dois pontos importantes. Em primeiro lugar, a questão que se faz é “a empresa é fornecedora do serviço ou mera intermediadora?” Em outras palavras, nos Termos de Uso das plataformas, é comum ver que elas alegam que são “intermediadoras“. Ou seja, a função delas é conectar motoristas aos passageiros e vice-versa.
Isso levanta a questão da responsabilidade civil. Se a plataforma é apenas uma intermediária, o motorista, enquanto prestador de serviços, pode ser considerado responsável por qualquer incidente que ocorra durante a viagem. Entretanto, essa visão pode variar dependendo da legislação local e do entendimento do judiciário sobre o papel das plataformas digitais.
Stéfano Ferri explica que o Judiciário brasileiro tem relativizado essa tese, especialmente quando a plataforma:
- A plataforma lucra com a atividade;
- Define regras e critérios de atuação dos motoristas;
- Atua com poder de exclusão ou punição dos parceiros;
- Não permite ao consumidor identificar o prestador do serviço individualmente, responsabilizando de fato a marca.
Responsabilidade solidária
Em acidentes, as plataformas de transporte por aplicativo respondem solidariamente. A responsabilidade solidária no CDC significa que todos os fornecedores de um produto ou serviço, desde a fabricação até a venda, podem ser responsabilizados por eventuais danos causados ao consumidor, de forma que o consumidor pode escolher contra quem acionar a justiça.
“Significa dizer que, mesmo se o motorista for autônomo e estiver irregular, o consumidor pode processar tanto o motorista quanto a plataforma, e deixar para eles a discussão sobre quem deve arcar com os custos, conforme determina a regra da solidariedade no CDC.”
Motorista na ilegalidade
Mas, e se ocorrer um acidente e o motorista de transporte por app estiver com a habilitação vencida, por exemplo, ou estiver dirigindo em nome de outra pessoa?
Stéfano Ferri é categórico: “Isso agrava o defeito na prestação do serviço, tornando ainda mais clara a falha de segurança – que é uma obrigação básica nos termos do CDC”. E, no caso, a plataforma também é responsável: “Se a empresa não exige CNH válida, cursos de capacitação, uso de equipamentos de segurança, etc., ela pode ser responsabilizada por negligência na escolha e fiscalização dos prestadores.”
Em conclusão, o consumidor (ou seus familiares) tem direito à indenização completa em caso de acidente ou morte. Ademais, a responsabilidade da plataforma é objetiva e solidária com a do motorista, especialmente se houver indícios de controle, lucro e poder sobre a atividade. A ausência de habilitação específica e segurança adequada agrava a situação, reforçando a responsabilização. E as plataformas podem ser demandadas judicialmente, não só o motorista.