Em 2024, um total de 2.273 empresas solicitou recuperação judicial no Brasil. O número é recorde, conforme dados da Serasa Experian, uma vez que representa crescimento de 61,8% em comparação a 2023. As micro e pequenas empresas foram as que mais recorreram à medida, contabilizando 1.676 pedidos. Já as médias empresas apresentaram 416 solicitações. E, por fim, as grandes, totalizaram 181 pedidos.
O setor de serviços dominou as estatísticas de pedidos de recuperação judicial, com 928 solicitações. A indústria, por sua vez, registrou 347 pedidos.
Diante desse cenário, a pergunta é: qual é o impacto disso para o consumo, de forma geral?
Em primeiro lugar, o aumento nos pedidos de recuperação judicial reflete uma fragilidade econômica significativa. Isso porque a recuperação judicial é muitas vezes o último recurso para empresas em dificuldades financeiras. Quem explica melhor é Filipe Denki, sócio do Lara Martins Advogados e especialista em reestruturação empresarial. “As principais razões incluem altas taxas de juros, crescimento da inadimplência e inflação persistente. Ademais, não podemos esquecer os problemas de infraestrutura. Há ainda o aumento no próprio número de pedidos de recuperação judicial, especialmente entre os produtores rurais pessoas físicas”.
Fato é que a alta demanda por esse tipo de proteção revela uma dificuldade generalizada no ambiente de negócios. Por consequência, isso pode resultar em desemprego crescente, aumento da inadimplência e uma desaceleração econômica ainda mais acentuada. “O cenário econômico para 2025 aponta para um cenário repleto de incertezas, mas também de oportunidades”, ressalta o advogado.
Marcas que entraram com RJ
A Ducoco Produtos Alimentícios, uma tradicional empresa cearense de derivados de coco, entrou com pedido de recuperação judicial para reestruturar uma dívida de cerca de R$ 670 milhões. O Grupo St. Marche também busca reestruturar suas finanças, tendo obtido uma tutela de urgência que suspendeu as execuções contra a empresa por 60 dias; sua dívida foi revisada de R$ 314 milhões para R$ 639 milhões. Além disso, a icônica Bombril solicitou recuperação judicial em São Paulo, enfrentando dívidas de R$ 332,8 milhões, além de um desafio significativo com a Receita Federal, que cobra R$ 2,3 bilhões por débitos de impostos de transações de 1998 a 2011.
Esses pedidos de recuperação judicial, neste ano, evidenciam a continuidade e o agravamento da crise econômica que afeta o panorama empresarial brasileiro. O crescimento dos pedidos de recuperação por parte de empresas de grande porte demonstra que a necessidade de reestruturação financeira continua elevada, uma vez que as dificuldades econômicas persistem desde o ano anterior. “O mercado brasileiro, assim como muitos países ao redor do mundo, tem enfrentado sérias dificuldades para se recuperar após a pandemia. Além disso, as flutuações políticas e econômicas globais também influenciaram o cenário econômico interno. Os principais agentes do mercado conseguiram sobreviver nos últimos anos, mantendo suas operações deficitárias e buscando empréstimos para evitar o fechamento”, afirma Denis Barroso, sócio da Barroso Advogados Associados.
Recuperação judicial no consumo
Mas, afinal, qual é o impacto dos 20 anos da Lei nº 11.101/2005 no consumo?
Para Cybelle Guedes Campos, sócia do Moraes Jr. Advogados, a trajetória da lei de recuperação judicial no Brasil sinaliza uma transformação significativa na maneira como as empresas enfrentam crises financeiras. Isso porque, ao possibilitar uma rota para a reestruturação e a continuidade das operações empresariais, a legislação não apenas favorece as empresas e suas funções sociais, mas também gera um impacto benéfico em todo o ecossistema que circunda as atividades, englobando colaboradores, consumidores, fornecedores e credores. Desta forma, contribui para a estabilidade econômica do país. “Desde a promulgação da Lei n.º 11.101, em 2005, o Brasil tem evoluído na estratégia de preservação das empresas em dificuldades financeiras, substituindo o antigo sistema de concordata, que apresentava diversos entraves à reestruturação das companhias, como a rigidez na aprovação dos planos de recuperação pelos credores”.
Entretanto, a atualização mais significativa na legislação, segundo Cybelle, ocorreu com a promulgação da Lei n.º 14.112, em 2020, que trouxe inovações relevantes. Entre elas, a facilitação do acesso ao processo de recuperação, mudanças nas regras de votação e a proteção dos ativos da empresa. “Seu principal objetivo é garantir a continuidade das atividades empresariais, preservando empregos e a cadeia produtiva. Ademais, essa legislação oferece uma gama de benefícios tanto para as empresas em dificuldades quanto para seus credores. Prova disso é a previsibilidade nos pagamentos de débitos por meio da renegociação das dívidas, que pode estabelecer prazos e condições viáveis para a solvência. Isso pode incluir a concessão de descontos, prazos mais longos para pagamento e até mesmo a conversão de dívidas em participação acionária.”
Stay period
Odair de Moraes Júnior é também sócio do Moraes Jr. Advogados. Com mais de 20 anos de experiência no campo jurídico, ele é especializado em recuperação judicial. Preside a Comissão de Recuperações e Falência da OAB/SBC e é membro da Turnaround Management Association do Brasil (TMA Brasil) e do Instituto Brasileiro da Insolvência (Ibajud). Odair explica que a escolha pela recuperação judicial confere à empresa uma maior confiança e credibilidade diante de investidores e parceiros comerciais, que a enxergam como uma entidade em busca de reestruturação e retorno à lucratividade. Durante o período de suspensão das ações judiciais e execuções, conhecido como stay period, a empresa é resguardada de constrições e expropriações patrimoniais, o que propicia o ambiente necessário para implementar as mudanças requeridas em sua gestão e operação, além de promover a melhoria do fluxo de caixa sem o aumento da dívida.
Na visão tanto de Odair quanto de Cybelle, ao longo dessas duas décadas de recuperação judicial no Brasil, é notável que, além da reestruturação financeira, o processo frequentemente resulta em uma reavaliação abrangente da gestão empresarial, promovendo melhorias operacionais, estratégicas e culturais que podem culminar em um negócio mais robusto e sustentável.
Os credores
Sob a ótica dos credores, a legislação conferiu a estes um papel mais proativo no direito falimentar brasileiro. Anteriormente, os credores não tinham a possibilidade de influenciar as decisões que envolviam a proteção de seus próprios interesses. A Lei 11.101 então ampliou a participação dos credores e fortaleceu seus poderes decisórios, proporcionando maior segurança e transparência para fornecedores e credores, especialmente em relação às empresas de pequeno e médio porte.
“Em suma, com a concessão do procedimento de processamento da recuperação judicial, as ações judiciais de execução e em fase de execução contra o devedor são suspensas por um prazo de 180 dias, que pode ser prorrogado por igual período uma única vez, e um plano de recuperação e soerguimento econômico é apresentado aos credores, que deliberarão em assembleia sobre sua viabilidade, para posterior homologação judicial”, comenta Cybelle Guedes Campos.
E, embora os benefícios dos processos de reestruturação sejam substanciais, é claro que estes também acarretam desafios, razão pela qual é imprescindível que, nos próximos anos, se promova o desenvolvimento e a discussão de instrumentos legislativos que permitam a adequação das micro, pequenas, médias e grandes empresas às exigências econômicas contemporâneas, bem como às práticas de sustentabilidade e gestão. É crucial que melhorias na legislação vigente sejam implementadas, a fim de conferir maior agilidade aos processos e acompanhar a dinâmica acelerada do cenário atual. Além disso, é necessário que haja um olhar mais atento da legislação para os novos modelos empresariais, como startups e fintechs, em um contexto cada vez mais marcado pelo empreendedorismo e pela inovação tecnológica”, informa Odair de Moraes Júnior.
Investimento
“Em tempos de crise, é crucial que as empresas entendam que nenhuma organização está isenta de dificuldades financeiras. Investir em controles eficazes e em uma gestão apropriada é vital para identificar e corrigir vulnerabilidades, assegurando a competitividade do negócio no mercado”, alerta Denis Barroso.
A recuperação judicial pode ser uma alternativa válida para organizações enfrentando problemas financeiros, permitindo a reestruturação das dívidas e a continuidade das operações. Contudo, a decisão de optar pela recuperação judicial deve ser feita com cautela. É imprescindível que a empresa realize uma análise minuciosa de sua situação financeira, de seus processos internos, da gestão de recursos e de suas estratégias de mercado para identificar e solucionar as causas da crise.