Se você tem aquela sensação de estar vivendo todo dia como se fosse o mesmo – por conta da rotina de trabalho e da mobilidade restrita imposta pela quarentena, saiba que não está sozinho. E esse cenário pode ser potencializado não só pelas incertezas dos tempos incertos patrocinados pela contaminação por Covid-19, como também pela própria natureza da mudança do esquema de trabalho, que foi de fora para dentro de casa e das reuniões e encontros presenciais para um monte de horários de calls e videochamadas.
De fato, neste cenário digital nossas movimentações se processam de outra e exigem outras atribuições do cérebro. É o que explica o médico psiquiatra Dr. Henrique Bottura, diretor da Clínica de Psiquiatria Paulista e colaborador do ambulatório de Impulsividade do Hospital das Clínicas de São Paulo: “Existe uma diferença de interação, mas não é possível indicar se há uma sobrecarga diferente. O que observo é que essas interações ligadas à tecnologia são densas”, explica ele. Soma-se a condição imposta pelo home office, na qual, muitas vezes, todos os papéis sociais da pessoa estão presentes no mesmo lugar: “Quando sou líder de uma empresa, por exemplo, tenho que acionar áreas do cérebro diferentes daquelas que uso quando sou pai. No home office, porém, esses papéis todos se misturam”, diz o especialista.
Acompanhe o bate-papo completo abaixo para entender melhor como reagir e se organizar diante das demandas e da realidade ultraconectada que se impõe em estado de quarentena ou mobilidade bastante reduzida, como é o caso agora. Confira:
Consumidor Moderno: Muito tem se falado e buscado sobre saúde mental atualmente por causa do Covid-19. É correto pensar que o uso excessivo da tecnologia para manter o trabalho remoto pode aumentar essa sensação de cansaço no cérebro?
Dr. Henrique Bottura: De fato, este é um momento em que a gente tem muitas dificuldades acontecendo conjuntamente – desde o risco da doença, do adoecimento individual ou dos familiares, passando pelo risco econômico e até a questão política acontecendo. Tudo isso gera muita tensão no indivíduo. Com o trabalho à distância, dentro de casa, a gente começa a ter uma relação diferente com ele; mas não é possível isolar apenas essa questão do trabalho remeto e da tecnologia. O que se percebe é que com o uso da tecnologia, acabamos fazendo mais reuniões, interagindo mais do que antes, e isso explica em parte nosso cansaço.
CM: É verdade que videoconferências e chamadas telefônicas (os conhecidos calls) podem esgotar mais nossa mente? Por quê?
HB: É uma interação diferente da presencial, na qual a gente está ali inteiramente, fisicamente presente. Nas videochamadas estamos mais atentos aos conteúdos das falas e à tensão com as telas. Eu não saberia dizer, exatamente, se teria alguma diferença nesse sentido. O fato é que existe uma diferença de interação, mas não é possível indicar se há uma sobrecarga diferente. O que observo é que essas interações de tecnologia são densas. No meu trabalho como psiquiatra, por exemplo, percebo que as consultas preenchem todo o tempo: se fala mais, se troca mais, o espaço entre os conteúdos me parece menor. De alguma forma isso poderia explicar o cansaço mais pelo modo da interação do que pela tecnologia em si. São perguntas para as quais ainda não há uma resposta clara para isso.
CM: Quais sinais nossa mente dá de que está fatigada por causa da atenção em excesso?
HB: Começamos a sentir uma tensão muscular ou um cansaço excessivo; pode haver alterações de sono, irritabilidade, alterações do humor. Quando a gente começa a ficar sobrecarregado, é normal ter sinais de fadiga do organismo.
“Ter horário para começar e ter para terminar, isso é o mais importante. É primordial que a pessoa possua essa disciplina de saber até onde pode ir em um dia, de encerrar uma atividade para começar a outra”
CM: Variações de humor também estão entre as queixas comuns de quem está trabalhando de casa. Esse também é um sinal de exaustão?
HB: Sim, conforme o organismo vai ficando exausto, há menos espaço interno para processar as coisas que acontecem, para sedimentar o que se passa todo dia. Daí pode vir essa desconforto emocional. É evidente, porém, que variações do humor podem estar ligadas a outros casos independentes do estresse, como quadros de depressão, ou a própria ansiedade quando patológica. Temos que ficar atentos para não jogar tudo na conta da situação atual, porque outros eventos podem estar acontecendo em paralelo.
CM: Você pode indicar alguns cuidados para se tomar a fim de não transformar o home office em um espaço de trabalho sem fim para a mente das pessoas?
HB: É muito importante o estabelecimento de rotinas nesta fase que estamos vivendo, nas quais a pessoa possa compartimentalizar as diferentes necessidades que o organismo tem. Eu gosto de falar da rotina organizada pelas necessidades biológicas que todos nós temos – ou seja, o sono, a alimentação e o movimento – colocando também algumas horas de relaxamento ao longo do dia. Eu entendo que a gente precisaria organizar a rotina dessa forma: horário de dormir e de acordar estabelecido; uma atividade física preferencialmente pela manhã, podendo variar de acordo com a necessidade de cada um. Ter horários de alimentação com pouca variação entre um dia e outro e o trabalho encaixado nesses momentos entre as alimentações. A meu ver, é fundamental preservar os momentos de relaxamento e lazer, que podem envolver não só ver filmes ou coisas do tipo, como também a interação social entre amigos e familiares. Ter horário para começar e ter para terminar, isso é o mais importante. É primordial que a pessoa possua essa disciplina de saber até onde pode ir em um dia, de encerrar uma atividade para começar a outra. É importante, por fim, regular o acesso às informações: ficar se alimentando com muita notícia desnecessária, não é bom nesse momento. O ideal é focar nos canais de comunicação adequados e evitar o catastrófico.
CM: Muitas pessoas estão lidando com o trabalho em home office pela primeira vez – e, por isso, se sentem pressionadas a entregar mais e mais trabalho. Ou ainda têm dificuldade em determinar esquemas de pausa para a mente, controlando o nível de atenção. O que você sugere para deixar as dinâmicas de trabalho remotos mais saudáveis?
HB: Volto para a questão da organização da rotina e da compartimentalização dos nossos papéis – que antes se dava muito pelo nosso deslocamento no espaço. Nesse modelo novo, o que a pessoa cumpria antes em lugares diferentes hoje está alocado em um ponto só, um espaço único. Então é importante que eu tenha em mente essa necessidade de mudanças de papéis que exigem outras regiões do meu cérebro. Acho que elencar esses papéis é muito importante, bem como se preparar para executá-los. Quando não temos essa clareza e ficamos migrando de um desses papéis para outro, nosso organismo gasta muita energia. É importante ter algum tipo de transição, como fazer meditação, por exemplo, ou algum relaxamento, se preparar para o que irá enfrentar na próxima situação. É uma forma de estar atento as próximos desafios e, com isso, ter uma sensação de mais vigor e mais força para lidar com esse momento difícil que estamos todos enfrentando.