Os dados, hoje, ajudam as empresas a criarem produtos e serviços que atendem cirurgicamente as necessidades dos consumidores, sendo possível atingir níveis de personalização e competitividade nunca antes imaginados.
Mas até que ponto essa estratégia agressiva de atender aos desejos do consumidor 24 horas por dia e 7 dias por semana é saudável para indivíduos e a sociedade como um todo?
Para responder estas e outras questões, o método de curadoria de conhecimento é utilizado por empresas e instituições que buscam uma avaliação técnica desses conhecimentos coletivos, a fim de entender o que realmente deve ser aplicado como tendência e o que deve ser descartado.
No painel “Society Centric ― saiba por que você deveria abandonar a ideia de ter o consumidor no centro das suas estratégias”, no CONAREC 2020, a curadora de conhecimento Gladis Viviane, da Inesplorato, abordou a ideia de que a estratégia “customer centric” possa ser uma dessas tendência que não necessariamente são as mais adequadas para este momento.
Os danos da economia da atenção
Enquanto a maior parte das empresas aborda o foco no consumidor como conduta central, a curadora traz um viés diferente sobre essa dinâmica.
Segundo Gladis, essa mentalidade, que é quase unânime nos negócios, começou no mundo das grandes empresas de tecnologia, e foi impulsionada pela quantidade massiva de dados que essas empresas conseguem colher ― já que agora é possível produzir conteúdos e serviços de forma personalizada e com foresight.
Um dos maiores exemplos é a Netflix, que usa algoritmos para criar um produto que se tornou praticamente um estilo de vida para muitas pessoas. E seu CEO, Reed Hastings, já revelou que o maior inimigo de seus negócios é o sono dos usuários, ou seja, o momento em que as pessoas dormem e param de consumir ― o que a curadora chama de “economia da atenção”.
Segundo Gladis, essa mentalidade é extremamente tóxica para a sociedade. “Já são raros os momentos da nossa existência, com exceção do sono, que não foram apropriados pelo marketing e pelo consumo. É preciso questionarmos, então, qual é o impacto disso em uma sociedade em que as horas de sono são cada vez mais escassas”, diz.
Na opinião da especialista, quando uma empresa afirma colocar o consumidor no centro, mas ao mesmo tempo os valoriza apenas no momento de captação da atenção, ela está desconsiderando todos os outros aspectos da existência humana.
“Quando olhamos para o que o déficit de sono pode ocasionar na vida das pessoas, e onde a economia da atenção pode chegar, começamos a questionar se o que está no centro são mesmo os usuários ou ainda são os negócios, mas com um discurso diferente?”
Assim, essa mentalidade que coloca o consumidor no centro seria uma redução da existência humana. “Ser humano é muito mais do que ser consumidor”, opina.
Aspectos da humanidade que não se relacionam com o consumo
De acordo com a pesquisadora, há uma série de aspectos da humanidade que ficam de fora da nossa existência em meio à dinâmica de consumo intensivo.
Como exemplos, ela cita a necessidade de socialização olho-no-olho, o viver ao ar livre e a necessidade de termos momentos de tédio e contemplação pura.
“Esperar cinco ou dez minutos pode se tornar uma eternidade sem poder rolar o feed de uma rede social, por exemplo. Estamos sendo moldados por essas empresas que se dizem customer-centric, mas que desconsideram vários aspectos importantes da nossa vida.”
Ética global e interdependência
Esse foco no consumidor também deixa de fora a interdependência com o planeta e os recursos naturais, segundo Gladis. “Para atender essa necessidade imediata dos consumidores, as empresas customer-centric prejudicam o meio ambiente ― que é a casa do consumidor”, explica.
Também, ao criarem soluções que apenas um grupo seleto de indivíduos é capaz pagar, elas prejudicam o resto da sociedade, agravando problemas como precarização do trabalho, especulação imobiliária e a desigualdade como um todo.
“Numa mentalidade que hierarquiza as pessoas com base no potencial de consumo, só é humano quem é cliente.”
E essa mentalidade ultracentrada no indivíduo com poder de consumo está em cheque com a pandemia, de acordo com Gladis. “A pandemia está nos fazendo perceber que estamos muito mais interconectados do que imaginávamos, afinal, não adianta eu poder me proteger do vírus se as outras pessoas não podem, porque elas irão nos contaminar, ocasionalmente.”
Desta forma, a pandemia teria trazido a noção de que, enquanto um ser humano estiver em perigo, todos os demais também estarão.
“Isso evidencia a necessidade de estratégias mais orientadas à coletividade. E isso pode ser um campo muito fértil para que empresas pensem em estratégias centradas na sociedade e não no indivíduo. Assim, o caminho ideal não é ser nem business-centric e nem customer-centric, e sim society-centric.”
De olho no futuro
Se o apelo da ética global não é suficiente para que empresas virem essa chave, Gladis afirma que as empresas precisam abrir os olhos para outros dois agentes que irão cobrá-las no futuro: o próprio consumidor, que já mostrou que não está disposto arcar com o sofrimento de outros seres humanos, e o mercado financeiro.
Ela cita como exemplo a Black Rock, o maior fundo de investimento do mundo e que, desde 2018, só investe em empresas que têm compromisso de longa data com a sociedade. “E eles fazem isso porque já é comprovado que empresas que olham acima do lucro têm desempenho acima da média com o consumidores e com o lucro holístico”, finaliza.