Isolamento, distanciamento, quarentena: nos últimos meses nós nos acostumamos com novas palavras e mudamos nossos comportamentos. Para preservar a nossa saúde e a nossa vida, renunciamos a muita coisa – o jantar no restaurante preferido, a convivência com os amigos, o happy hour de toda semana, a estreia no cinema, a festa de aniversário, a rotina social no local de trabalho diário, o evento tão esperado. Fomos rapidamente criando nossas bolhas de segurança e conforto mental, evidentemente, considerando aqueles que tiveram oportunidade para moldar seus ambientes residenciais para trabalhar remotamente e conciliar a vida familiar, pessoal e profissional.
Mas a quarentena forçada para uns e a necessidade de isolamento provável para outros, reforçou a dissonância cognitiva que há anos vem se disseminando nas sociedades de inúmeros países, particularmente nas ocidentais. Não é de hoje que a sociedade brasileira vem sucumbindo, de modo inconsciente à uma doença sorrateira, que pouco a pouco foi condicionando as pessoas a se fixarem em suas bolhas, procurando apenas cultivar ideias e informações que se alinhassem às suas crenças e visão de mundo.
De modo imperceptível, aos poucos fomos renunciando à nossa habilidade social de confrontar opiniões, enriquecer nossas conversas, estimular o debate a respeito dos mais diversos assuntos. Sob o signo da polarização, a sociedade sentiu-se estranhamente à vontade para se dividir e se aglutinar em polos opostos diante de qualquer assunto. Da política – esquerda ou direita – essa tendência esparramou-se por praticamente todos os assuntos e escolhas da nossa vida. Hoje, precisamos assumir uma posição que é sempre a favor ou contra uma ideia, um produto, uma pessoa, até mesmo um remédio!
As consequências dessa polarização são terríveis: de que forma podemos oferecer segurança e respeito aos cidadãos se o diálogo cedeu lugar à raiva, à agressão gratuita, ao alinhamento automático e sem reflexão à uma extremidade ou outra? A principal consequência que se observa diariamente em todas as plataformas de comunicação – mídias tradicionais, disruptivas, sociais, subterrâneas e conspiradoras – é a criação de narrativas que exploram os vieses de confirmação, crenças e zonas de conforto dos cidadãos, procurando reforçar ideias, conceitos, preconceitos, posições políticas sem dar tempo à reflexão e sem criar pontes de diálogo possíveis.
Mas os efeitos das guerras de narrativas também trouxeram consequências mais danosas às mentes individuais: a busca por construtos e histórias que modelem a realidade e a percepção das pessoas para dar sentido às suas próprias vidas. A realidade dos fatos se vaporizou diante da força de argumentos fracionados, deliberadamente montados, manipulados para trazer conforto à mentes frágeis ou incapazes de encarar a vida como ela é.
Percebam que todo fato precisa ser discutido, desconstruído, exagerado, relacionado, associado até que ele perca sua essência e daí em diante seja reduzido a um pedaço de informação que possa ser reconstruído, “ressignificado” ao bel-prazer para servir de combustível a grupos, grupelhos e redes orquestradas inflamarem seus discursos e reforçarem suas narrativas e também para empurrar os indivíduos para dentro de suas bolhas perceptivas. Camadas de informações desconstruídas, de fatos “ressignificados” vão se formando até tornarem as mentes impermeáveis à realidade. Fatos, evidências, dados, contrapontos, nada é capaz de penetrar o muro que protege e filtra toda informação para reforçar o viés de confirmação.
É incrível como a vida em si perdeu seu sentido, diante da narrativa que embala a vida e redesenha a realidade para que ela aprisione vontades, sequestre o bom senso e faça da tolerância uma atitude para os fracos. A existência só ganha o sentido com o confronto, o atropelo, a radicalização. O diálogo, a harmonia, o jogo de contrastes é demonstração de fraqueza, debilidade e uma concessão para os “inimigos”.
Mas então é lícito e real viver a vida que se cria e não aquela que está à nossa frente? É melhor viver nesse “Second Life” (um mundo virtual do início dos anos 2000 onde as pessoas criaram avatares de si mesmas, muitas vezes em desacordo com sua personalidade) mental que os indivíduos idealizaram para não enfrentar nada que se oponha ou divirja das próprias percepções?
Então, nesse mundo plástico, moldado para reforçar crenças rasas e ideias incansavelmente repetidas para que se tornem verdades únicas, não há espaço para o novo, o diferente, o inovador? Tudo necessariamente precisa trazer um ponto de inflexão, um interesse escuso? Caminhando nessa direção, as pessoas que se refugiam em suas realidades imaginadas não desenvolvem paranoias incontroláveis que se manifestam ao menor sinal de controvérsia ou de “ameaça” às percepções cristalizadas?
É necessário refletir até que ponto não nos tornamos reféns das nossas próprias narrativas, para que nos ajustemos às outras narrativas que nos alinhem a grupos de interesse, para que sejamos integrantes de massas de manobra. Temos de ter a coragem de ver se não estamos nos tornando simples unidades de informação que reagem aos comandos de algoritmos que podem sim comandar nossas decisões. Em última instância, a liberdade individual reside na coragem de encarar os fatos, de exercitar o contraditório, de refutar doutrinas e de formar opiniões próprias que possam até mesmo colidir com nossas crenças e até reformá-las.
Romper com a padronização e a simplificação redutora das narrativas disponíveis e autoimpostas é recuperar o direito de viver a vida real. É preciso ter coragem, independência e persistência. Não é fácil, mas vale a pena.
Melhor do que ser prisioneiro de uma realidade imaginada sob medida para dar sentido vazio à nossa vida, é encarar a verdade dos fatos, ser consciente da própria independência e correr os riscos decorrentes de ter opiniões realmente próprias.