Em 1909, Harry Selfridge, um empreendedor norte-americano tentou a sorte em Londres, então a capital do mundo e do Império “onde o sol nunca se põe”. Com notável espírito pioneiro, abriu aquela que seria a referência das lojas de departamento que marcaram a história do capitalismo: a Selfridges.
Na Netflix é possível acompanhar de Harry Selfridge (interpretado na série, por um soberbo Jeremy Piven), nos planos pessoal e profissional, com muita ênfase sobre a saga da loja que mudou o varejo. Está tudo ali: “o cliente tem sempre razão”, a alocação dos produtos cosméticos femininos na entrada da loja, a divisão em departamentos, “lojas dentro da loja”, moda, acessórios, perfumaria, restaurante, o cuidado com as vitrines, a criação de experiências que motivassem os clientes a irem frequentemente para a loja, a possibilidade de degustações, a exibição de vernissages, noites de autógrafos, a criação de calendário promocional e sazonal e assim por diante. A série, para além do arco dramático, é um mergulho fascinante nas estratégias que constituem o DNA do varejo como o conhecemos.
Corte rápido para 100 anos no futuro: Século XXI. A Netflix também nos traz as temporadas da série Billions, onde dois personagens protagonizam uma espécie de “Duelistas” (filme de Ridley Scott) dos tempos modernos: o procurador público Chuck Rhoades (o notável Paul Giamatti) e o bilionário do mercado financeiro Bobby Axelrod (Damien Lewis, também em grande atuação). As peripécias de Axelrod, à frente da Axe Capital, sua empresa de investimentos, cria um paralelo interessante sobre a evolução do capitalismo e dos mercados e alimentam um contraste incômodo: em que momento que valores essenciais dos empreendedores deram lugar a um espírito destrutivo, belicoso, inescrupuloso e desleal, em nome da necessidade de vencer a dura competição do mercado?
Honra, dignidade, integridade como bases para uma competição justa
Antes que os mais afoitos possam tomar partido, este artigo não se propõe a demonizar o capitalismo, ao contrário. Ele se propõe a enfatizar quais valores podem estar em dormência ou pior, ignorados, neste momento histórico conturbado, em plena pandemia de COVID-19, onde o “salve-se quem puder” de nações e empresas desvirtua noções básicas de civilidade e diálogo construtivo.
Dito isto, retornamos ao centro de nossa análise: o que une e, mais importante, o que separa personagens como Harry Selfridge e Bobby Axelrod, além de 100 anos de história? Essa distância entre a abordagem competitiva dos personagens retrata um mercado que em sua evolução perdeu alguns dos princípios que formavam sua aura e sua alma.
Vejamos: de origem humilde, Selfridge foi entregador de jornais e com grande esforço, construiu uma carreira empreendedora que o levou a criar sua loja em Londres (a capital do mundo), em 1909, a partir de uma visão que idealizava uma experiência acessível – “um espaço onde todos os londrinos seriam bem-vindos”. Ele buscou financiadores e procurou montar uma equipe fundada em valores de lealdade, respeito, autoridade, orgulho de pertencer e meritocracia. Não admitia pequenos desvios de comportamento – furtos de mercadoria por funcionários eram punidos com demissão “sem referências”, o que à época era um atestado de desconfiança eterno – mas valorizava o trabalho duro, a honestidade de propósitos e a força criativa.
Com a eclosão da Grande Guerra, em 1918, a Selfridge’s organizou um “pelotão” com os homens que se alistaram no exército e Harry, por sua vez, assegurou que todos tivessem seu emprego garantido no retorno da batalha. Para suprir as vagas em aberto, o empreendedor não hesitou em acolher a ideia de contratar mulheres, que chegaram até mesmo a fazer serviços de carga e controle de estoque (um escândalo para a época).
Selfridge colaborou com o governo inglês no esforço de guerra e foi traído por nobres da Câmara dos Lordes que o viam como “um lojista”, um “plebeu americano inferior”, que enriquecia vendendo quinquilharias para mulheres desocupadas. Harry, no entanto, não se curvou ao estado ou à nobreza. Continuou trabalhando firme no propósito de criar uma experiência de compra acessível, vibrante, absolutamente íntegra e honesta com a comunidade, os empregados e os clientes.
É surpreendente ver, dentro da proposta dramática da série (que talvez possa ter romanceado a realidade), o quanto a verdade, a amizade e a lealdade eram valores supremos. Em dado momento (alerta de spoiler), Selfridge decide fazer um investimento imobiliário que era insistentemente contestado pelo seu CFO. Na reunião de acionistas, o empreendedor falava tranquilamente sobre os planos de investimento vendo a aprovação no conselho de administração como favas contadas. Seu CFO, Mr. Cobb, toma a palavra e então, com educação e sobriedade, mostra que o investimento colocaria a operação da loja em risco. Investimento negado, em uma cena memorável, Mr Cobb leva a Selfridge sua carta de demissão, negada pelo líder. Sim, Selfridge foi contestado e teve sua vontade negada, mas não perdeu o respeito e a confiança pelo subordinado.
“Eu gosto de ser um monstro e é isso o que as escolas não gostam de ensinar”
Olhando 100 anos para o futuro, encaramos Bobby Axelrod, personagem criado por Andrew Sorkin, David Levien e Brian Koppelman para a série Billions do canal americano Showtime. Competitivo, agressivo, disposto a transpor limites para negociar qualquer coisa que lhe garanta mais dinheiro ou atenda à sua vaidade pessoal, Axelrod preza uma lealdade diferente, não baseada na ética do trabalho, mas do dinheiro. Empresas são compradas, vendidas, descartadas em dias ou meses, como partes de um jogo onde o giro veloz de dinheiro importa mais que os fundamentos, o mercado, comunidades, trabalhadores e relacionamentos. Entre deixar de ganhar dinheiro e se manter leal a uma amizade, Axe muitas vezes opta por ganhar dinheiro e tentar “recomprar” a lealdade (literalmente) depois. Axe se envergonha de seu passado humilde, é predador, “um monstro” que faz tudo aquilo que “tornou a América” um paraíso para se ganhar dinheiro com as ideias dos outros.
O bilionário gosta do jogo, gosta de exibir poder, se apraz em mostrar que todos podem ser comprados, todos têm um “podre” que pode e deve ser usado para que se dobrem à sua vontade. Quando seu filho comete uma falta grave e é ameaçado de expulsão do colégio, Axelrod procura qualquer coisa que possa infamar o diretor da instituição. Em dado momento, em uma palestra para os alunos declara, com arrogância peculiar: “Eu sou o monstro aqui, um monstro necessário, e estou afirmando que todos vocês aqui precisam ser assim e precisam saber disso, porque esta escola nega que o mundo precise de gente como eu”. Ainda assim, tanto como Selfridge, Axelrod é fascinante.
Unidos pelos extremos, separados pelas convergências
Harry Selfridge e Bobby Axelrod: um é personagem real, retratado com liberdade dramática. O outro é personagem de ficção, retratado a partir de contrapartes reais. Um lembra de seu passado e o usa como pilar e exemplo de suas conquistas e como parte de seu legado. O outro renega seu passado, que o envergonha e o enche de raiva, e nada acrescenta ao seu legado.
Mas Harry e Axel gostam de competir, gostam de sobrepujar os desafiantes, de apostar (enquanto Selfridge gostava de pôquer, Bobby diverte-se no cassino dos mercados financeiros, mexendo com as cotações de ações) e vencer. O que os difere é o método. O fundador da Selfridge acredita piamente na ética do trabalho, no esforço pessoal, na honra entre competidores, na verdade e na integridade. A linha divisória aqui é simples: qual o limite do que se deve fazer para ganhar dinheiro? Até que ponto o mercado estimula uma competição leal para que os trapaceiros não triunfem? Selfridge demarcou a sua linha e fez de tudo para não ultrapassá-la. Axel a apagou, pura e simplesmente. Não que o bilionário americano da ficção seja “desonesto”, no sentido intrínseco da palavra, ele apenas “alarga” o horizonte do poder financeiro e de cooptação do dinheiro para submeter empresas, empregados, parceiros às suas decisões.
Isso quer dizer que Selfridge seria mais digno e que sua trajetória seja mais exemplar que a de Bobby Axelrod e seus companheiros de engrenagem financeira? A resposta é mais complexa, e traz mais nuances. Ainda que Harry Selfridge tenha enfrentado um momento de grande mudança – luz elétrica, automação, guerra mundial, pandemia (gripe espanhola), ascensão do comunismo – o conceito de civilidade e disputa leal era bem definido no panorama dos negócios.
Axelrod é um exemplo de um mercado muito mais diversificado, complexo, no qual as companhias se misturam em intrincados laços acionários, holdings, joint ventures e interesses. Talvez Axe seja o perfil mais indicado para fazer frente a um mercado de giro acelerado, instantâneo, movido por troca intensa de papeis e muitíssimo diversificado, com novos modelos de negócio sendo construídos e reinventados pela lógica digital. Talvez Selfridge, com seus valores pessoais, não pudesse compreender que o contato pessoal dentro de uma loja poderia ser prescindível diante de robôs, mecanismos de autoatendimento e autosserviço, ou mesmo da compra por um clique onipresente no comércio eletrônico.
O fato é que entre os Selfridges e os Axelrods, uma lacuna se abriu e dificilmente será superada: um espaço onde os empreendedores viam o mercado como uma arena onde a competição acontecia obedecendo a regras não escritas, presumidas, simétricas, quase justas. No mundo atual, repleto de regulamentações, controles, leis e dispositivos, o mercado é mais bruto, inclemente, implacável e assimétrico, quase injusto. Em que medida será possível encontrar uma nova forma de equilíbrio para que os mercados evoluam sem perder sua alma e seu poder transformador, renovador e gerador de mais oportunidades, é algo para ser estudado.