No Brasil, é muito comum de conflitos de toda e qualquer natureza terminem na Justiça: em 2020, havia 90 milhões de ações no País. Não por acaso, segundo o CNJ, em 2019 o gasto do Poder Judiciário (somando todos os entes) foi de R$ 100 bilhões. No âmbito do consumo não é diferente: a Judicialização é uma realidade custosa (em todos os sentidos), como destaca Luciano Timm, sócio-fundador do Carvalho, Machado & Timm Adv. e ex-Secretário Nacional do Consumidor, durante o evento Desjudicialização no Turismo, promovido pela Consumidor Moderno.
Os números mostram que esse desafio envolve diferentes setores da economia, mas alguns deles são especialmente prejudicados: apenas 20 empresas concentram mais do que 50% dos litígios no Brasil. Operadoras de telefonia e as instituições financeiras consistentemente agrupam mais de 40% dos processos em todas as unidades de federação pesquisadas.
No caso das empresas de serviços aéreos, o custo do litígio chega a R$ 1 bilhão, segundo diretores da ANAC. Em paralelo, dados do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (Ibaer) revelam que 98,5% das ações cíveis no mundo contra companhias aéreas estão no Brasil. Mas será que esses dados correspondem à qualidade do serviço prestado por essas empresas?
A experiência mostra que não, afinal, a companhia aérea eleita mais pontual do mundo é brasileira. Além disso, apesar do cenário de crise decorrente da pandemia de COVID-19, essas empresas mantiveram o patamar de qualidade na prestação de serviços em 2022: no Brasil, de acordo com Eduardo Sanovicz, Presidente da Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), 96% dos voos programados foram realizados; 86% decolaram pontualmente.
Aviação e turismo em números
- R$ 100 bilhões foram gastos pelo Poder Judiciário em 2019, somando todos os entes, segundo o CNJ;
- R$ 1 bilhão ao ano é a despesa dos serviços aéreos com a Judicialização, de acordo com diretores da ANAC; o total (incluindo todos os custos e despesas) é de R$ 36,2 bilhões.
- 96% dos voos programados foram realizados e 86% saíram pontualmente em 2022, aponta a Abear;
- 98,5% das ações civis no mundo contra companhias aéreas estão concentradas no Brasil, mostram a IBAER;
- 65 aplicativos para ajuizamento de ações contra empresas de aviação estavam disponíveis entre 2019 e Junho de 2022. Entre eles, 37 foram impedidos de atuar, pela Justiça Federal, segundo a Corregedoria Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Judicialização também é um negócio
Diante de dados positivos que indicam a excelência na performance dos setores de turismo e aéreo no Brasil, fica a questão: por que a Judicialização é uma realidade dessas empresas? Solano de Camargo, sócio-fundador do escritório Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e Presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP, explica que a raiz desse problema está nos chamados “aplicativos abutres”.
Eles se apresentam como civic techs e utilizam recursos de marketing digital para envolver cliente em propostas de lucro fácil que, no fim do dia, geram mais custos ao Judiciário (tanto para as empresas quanto para o Estado) e, consequentemente, para o consumidor, de forma coletiva – a partir do aumento de impostos e custos de serviços e produtos.
O que são aplicativos abutres?
- Apresentam-se como Civic Techs;
- Usam marketing digital para captação
- Incentivam a Judicialização
- Utilizam petições padronizadas e informações duvidosas
- Trabalham no êxito e adiantam recebíveis
- Não utilizam canais de atendimento para resolução adequada de conflitos
Fonte: LBCA
“Esses apps são muito fortes em marketing digital, o que permite direcionar a propaganda deles para possíveis clientes”, explica o especialista. Uma reclamação ou questionamento feitos em um site de busca sobre extravio de malas, por exemplo, pode ser um gatilho para receber tais comunicações.
A partir disso, podem surgir principalmente duas dúvidas:
1. Por que essa prática é errada?
O Presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB-SP explica que a atividade dos aplicativos abutres pode ser chamada de “advocacia predatória” e desenvolve um tipo de publicidade que está em desacordo com regras da OAB, pois oferece:
- Promessas de lucro fácil;
- Mercantilização da indenização;
- Incentivo a uma cultura de ódio consumerista em plataformas sociais.
Como exemplo, ele menciona o caso de uma civic tech que anuncia: “Receba até R$ 1000 pelo seu problema de voo”. Outra, propõe: “Já imaginou trocar seu problema com voo por dinheiro na conta? Nós pagamos R$ 1200 reais por ele na hora”. A partir do cadastro do cliente, o aplicativo abutre abre automaticamente um processo e lucra com os valores pagos pela empresa processada (no caso, a companhia aérea).
O fato é que, a partir do uso desses apps, o consumidor sai perdendo mesmo quando tem direitos perante à empresa. Na aviação, valem exemplos relacionados a atrasos e cancelamentos de voo, overbooking etc. Nesses casos, o cliente tem direito à assistência material, que envolve comunicação, alimentação e acomodação, que devem ser custeados pela companhia aérea, de acordo com determinação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).
Portanto, imagine que, apesar das exigências do órgão regulador, um cliente passou por alguma dessas situações em um voo não tenha recebido os devidos serviços. Frustrado, decide processar a empresa por danos morais. Se o valor da causa for menos do que o total de 40 salários mínimos (R$ 52 mil), esse será um caso direcionado aos Juizados Especiais Cíveis (JEC) e, caso o total esteja abaixo de 20 salários mínimos (R$ 26 mil), o consumidor não precisará nem mesmo da assistência de um advogado.
Vale ressaltar que os JECs têm como intuito resolver causas de menor complexidade com agilidade e, buscam, sempre que possível, o acordo entre as partes. Isso significa que os aplicativos abutres ferem até mesmo o princípio desse Juizado que, inclusive, procuram dar agilidade à Justiça, em vez de sobrecarregá-la. A abertura massiva de processos relacionados a consumo – inclusive sem que haja a devida orientação ao consumidor sobre seus direitos – percorre o caminho contrário.
Ou seja, ainda que seja um caso em que o cliente tem direito a uma indenização por danos morais (por exemplo), as alternativas apontadas pela Justiça levam a duas possibilidades positivas para todas as partes: primeiro, a mediação, harmonização e conciliação, a partir dos princípios do JEC; segundo, a redução dos custos ao consumidor (ao dispensar a contratação de um advogado). Os apps abutres fazem o oposto: compram os dados dos consumidores para ampliar a Judicialização; não buscam a mediação, fortalecendo um ambiente de desarmonia no consumo; em casos em que há uma indenização, ficam com parte do valor que seria um direito do consumidor.
2. Por que os consumidores “caem nessa”?
Durante a produção deste conteúdo, foram feitas algumas buscas no Google a respeito do tema. Os resultados demonstram a força e o conhecimento técnico de marketing digital daqueles que praticam a advocacia predatória.
Este é o resultado para a busca por “direitos voo cancelado”, por exemplo:
Alguns fatores ficam evidentes a partir desses anúncios: a forma como essas empresas fingem atuar em defesa do cliente, colocando-o contra a companhia aérea; a sensação de lucro fácil, a partir de um sistema supostamente eficiente; o domínio de ferramentas de marketing digital. Dessa forma, a publicidade praticada por essas empresas atinge o consumidor de maneira agressiva: basta um pouco de desconhecimento sobre digital ou sobre Judicialização para ser enganado.
Alternativas: elas existem!
Os aplicativos abutres já são conhecidos da Justiça. Timm trouxe dados que corroboram esse fato: de acordo com a Corregedoria Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre o fim de 2019 e Junho de 2022, foram identificados 65 aplicativos que estimulam o excesso de judicialização na aviação comercial. E 37 foram impedidos de atuar por decisão judicial.
Identificar essas civic techs, entretanto, não é tão fácil quanto parece. Como destaca Solano de Camargo, existe um complexo ciclo de atividades que começa no cadastro do consumidor pelo site abutre. Ao longo do processo, envolvem-se diferentes advogados (ou escritórios pequenos), que representam a civic tech, evitando que haja uma relação contratual entre ela e o consumidor. Isso também vale para os registros de pagamentos.
Soluções em vista
Solano de Camargo explica que a LBCA atua em duas frentes para combater os aplicativos abutres. “Dessa forma, identificamos as árvores dentro da floresta apresentada por Luciano Timm”, comenta, referindo-se aos fatores individuais que levam ao cenário de Judicialização apresentado de forma macro pelo ex-Secretário Nacional do Consumidor.
Confira:
1. Medidas preventivas
- Monitoramento de novos aplicativos abutres pela Diana – IA
- Dossiês sobre a engenharia de captação e atuação
- Identificação dos advogados dos apps pela Diana – IA
- Atuação institucional (Judiciário, Numopepe, MP, OABs, CNJ e outros)
- Representação de advogados na OAB e TED
2. Medidas repressivas
- Utilização da Diana – IA, para identificar em quais comarcas estão os processos, ticket médio de condenação e outros dados
- Estratégia processual direcionada a atuação de cada aplicativo e suspensão dos acordos
- Visual Legal para demonstração da engenharia dos aplicativos e atuação deles
- Visitas institucionais aos Juízes ao Numopede
- Representação na OAB e TED contra advogados infratores