Com a Inteligência Artificial (IA) revolucionando a forma como produzimos todo tipo de conteúdo digital e atraído empresas de diversos segmentos, a indústria fonográfica é uma das que vêm sendo impactada por esse potencial transformador da IA. Ferramentas como Mubert, Suno, Udio e Jukebox, da OpenAI, permitem que qualquer pessoa crie músicas completas em minutos, mesmo sem conhecimento técnico ou equipamentos sofisticados.
De fato, a IA democratizou a produção musical, tornando-a acessível a um público muito mais amplo. No entanto, transformar essa música em um sucesso comercial é uma questão completamente diferente.
Porém, o crescimento da IA na música é surpreendente. Em abril deste ano a plataforma Deezer revelou que recebe cerca de 20 mil faixas geradas por IA por dia. Aproximadamente 20% das músicas enviadas à plataforma são criadas inteiramente por IA — o dobro do registrado apenas três meses antes. O Spotify também aceita músicas geradas por IA, desde que respeitem os direitos autorais. Já a Apple Music adota uma postura mais restritiva, exigindo créditos detalhados de produção para cada faixa.
Uma pesquisa da Ditto Music com mais de 1.250 artistas independentes revelou que cerca de 60% já utilizam IA em seus projetos musicais — seja para compor, produzir, mixar, masterizar ou criar capas de álbuns. O levantamento mostra que 61,5% usam IA na produção, 47,1% na composição e 66% para mixagem e masterização.
De quem é a música?
A chegada da IA à música remete, em parte, ao impacto causado pelo Pro Tools nos anos 90 — software que democratizou o acesso à produção musical profissional, até então restrita a estúdios caros e altamente especializados. O grande desafio atual da indústria musical, no entanto, é identificar quando uma canção foi criada total ou parcialmente com IA. Isso não quer dizer se a faixa é boa ou ruim, mas é uma forma de garantir a correta monetização e o reconhecimento dos respectivos criadores.
Pensando nisso, a empresa de tecnologia brasileira TuneTraders acaba de lançar uma solução inédita no mercado: um detector de Inteligência Artificial voltado exclusivamente para o setor musical. Desenvolvido integralmente no Brasil, o sistema é capaz de identificar com precisão a presença de IA em composições, determinando inclusive quais obras foram utilizadas para treinar o modelo e em que trechos essas influências aparecem.
A proposta da inovação, segundo seus idealizadores, não é barrar a criação musical com IA, mas oferecer uma ferramenta de esclarecimento, monetização e transparência para a nova realidade da produção musical com IA.
Rastreabilidade, auditoria e aferição
O diferencial da solução da TuneTraders está em seu protocolo verificado por blockchain, que garante rastreabilidade, auditoria e aferição com precisão e rapidez. A tecnologia permite aferir a melodia original, o tipo de compressão do arquivo e o histórico de criação da obra, conferindo segurança a músicos, distribuidoras, plataformas digitais e entidades reguladoras.
Carlos Gayotto, sócio-fundador da TuneTraders, explica: “Com mais de 75% de acurácia, conseguimos sinalizar se a música foi feita com IA, se há trechos oriundos de outras obras e se essas obras foram usadas no treinamento do modelo. Assim, é possível remunerar os autores originais no médio e longo prazos. A obra é executada e toda a cadeia, desde a execução até o registro e pagamento daquele play, está registrada na TuneTraders.”
Sobre o uso da blockchain, ele complementa: “É um registro eletrônico de transações, onde as informações são armazenadas de forma segura, transparente e impossível de ser alterada sem o consenso da rede — no nosso caso, músicos, distribuidoras, gravadoras, entidades, etc.”
Neste primeiro momento, a empresa busca parceiros estratégicos que tragam o usuário final para o protocolo. “A indústria fonográfica é composta por 26 stakeholders entre o criador e o ouvinte. Pensamos sempre em sinergia com o que já existe, e não em uma ruptura. Estamos conectando distribuidoras, associações, entidades reguladoras e plataformas de streaming”, diz Carlos.
Uma jornada que começou na pandemia
Carlos Gayotto e Maurício Magaldi, cofundador da empresa, iniciaram o projeto em 2020, inspirados pela iniciativa “Open Music”, da Berklee College of Music, em parceria com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Durante a pandemia, começamos a estudar soluções baseadas nas pesquisas da Berklee com o MIT e, desde então, demos continuidade ao projeto que originou o protocolo”, explica Carlos.
Para Carlos, a criação musical baseada em IA pode ser compreendida como uma nova etapa da produção musical, mas com avanços corretos. “Jamais devemos impedir a criatividade e inovação. É justamente por isso que a colaboração entre humanos e IA exige parâmetros éticos e transparentes. Saber se houve uso de obras anteriores no treinamento e garantir o pagamento justo ao autor original é essencial.”
Nesse sentido, a TuneTraders pretende atuar como uma ferramenta de consenso, ele diz, podendo ser adotada por entidades como o ECAD e outras associações responsáveis pela arrecadação e distribuição de direitos autorais. “Já estamos dialogando com o mercado, com reguladores, governo, gravadoras — estas últimas ainda um pouco reticentes. Mas seguimos reunindo os envolvidos para atingir nosso objetivo: distribuir melhor a receita entre artistas, criadores e a criatividade humana como um todo”, explica Carlos.
IA, arte e o futuro da música
Como em outros setores, a adoção da IA na música envolve não apenas inovação, mas redução de custos e aumento da eficiência. Para Carlos, no entanto, o papel da criação humana continua sendo central na arte. “A IA vai ocupar muitos espaços, sim, mas não o da arte refinada. Até hoje, nenhuma tecnologia eliminou o valor da expressão artística. O consumo dita tendências, mas sempre haverá espaço para tudo, desde que haja formação e educação do público.”
O grande valor de iniciativas como a da TuneTraders talvez reside no equilíbrio entre tecnologia e homem, em preservar o valor da criação humana em meio ao avanço tecnológico. Não é sobre limitar a inovação e a criação musical com auxílio tecnológico, mas, ajudar a identificar autores e obras originais, auditando o uso de conteúdo e facilitando o pagamento de royalties. Não é sobre barrar a IA na arte, mas estabelecer diretrizes para o uso consciente.
“Música é parte essencial da nossa vida. Mas se os criadores não forem remunerados de forma justa, eles deixarão de alimentar os modelos de IA. E aí, ela passará a criar apenas com base em si mesma — o que será, no mínimo, redundante”, finaliza Carlos Gayotto.