O Brasil é uma fábrica de memes! E muitos deles estão relacionados com problemáticas vividas no País. Um dos casos mais recentes é o do anúncio de que a Copa América seria sediada em solo verde a amarelo após ser recusado por Chile e Argentina devido à pandemia. Com isso, sugiram memes intitulando a competição de “Cova América” e dizendo que o torneio “será contagiante”.
Como tudo na internet, a competição já começou envolta em polêmica: há quem defenda que, por conta da pandemia, a Copa América deva ser remota e que tudo poderia ser resolvido com uma ajudinha do videogame. Brincadeiras à parte, diante da polarização, os memes parecem ter se tornado um grande mecanismo de defesa dos brasileiros.
Fazer piada com todo tipo de situação, mesmo as mais desesperadoras, tornou-se marca registrada dos brasileiros, que encontraram nos memes uma forma de defesa psicológica, capaz de expressar sentimentos, compartilhar emoções e até ajudar a lidar com problemas.
Por que o brasileiro é uma fábrica de memes?
Se você consultar um dicionário tradicional, possivelmente, não vai encontrar o significado da palavra meme, afinal, ela foi adicionada recentemente ao nosso léxico. Mas, neste caso, a definição formal do dicionário é completamente dispensável: o brasileiro entende, melhor do que ninguém, o que é um meme.
Com o advento da internet, em especial as redes sociais e o WhatsApp, os conteúdos virais caíram no gosto popular e passaram a ser utilizados para verbalizar sentimentos, fazer piada de problemas comuns, expressar opiniões e até mesmo como forma de protesto.
“Através dos memes conseguimos acionar uma narrativa visual e resumir muitos conceitos, conexões e referências. O repertório visual que o brasileiro carrega consigo faz do meme um veículo semiótico, tal como acontece com as charges. O meme sintetiza muito bem uma estética muito própria do Brasil, que é esse caldeirão multicultural”, explica a antropóloga Carolina Zatorre, head de pesquisa da Kyvo.
Em resumo, os memes podem ser vídeos, frases, charges, desenhos, gifs e até mesmo figurinhas e sua principal característica é a adesão coletiva: quanto mais rápido se espalha, mais popularidade ganha.
Mas por que os brasileiros se identificaram tanto com este tipo de comunicação para expressar ideias e sentimentos? De acordo com a antropóloga, a resposta pode estar no formato.
“O brasileiro médio não tem muita intimidade com a narrativa literária. A cultura brasileira é permeada por narrativa oral e imagética, vide que somos produtores de novelas, enredos de Carnaval, histórias de cordel, festas folclóricas e de frases de para-choque de caminhão. A estética do Brasil é muito diversa, até porque juntou muitas culturas e repertórios diferentes, com idiomas diversos, inclusive. A saída de contar histórias ou desenhos sempre foi uma ‘tecnologia’ local”, analisa Carolina Zatorre.
Além disso, a capacidade de comunicar de maneira democrática e de sintetizar referências acentua ainda mais o potencial e o alcance dos memes. “O meme tem o papel de sintetizar rapidamente muitas referências, e ele é usado como um artefato que comunica de maneira democrática, pois é intergeracional, multiétnico e independe classe ou acesso financeiro. Os stickers também seguem a mesma linha. Podemos dizer que é uma inovação na linguagem, pois é uma espécie de infográfico. Você não representa um conceito, mas expressa sentimento por meio de exemplo”, avalia a antropóloga.
Memes: a prova de que rir é o melhor remédio
Fazer piada com os problemas vividos no País e até mesmo com as próprias dificuldades e sentimentos é, de fato, uma especialidade dos brasileiros. Essa habilidade ficou ainda mais explícita durante a pandemia. Com as restrições de circulação e as medidas de quarentena, memes relacionados ao isolamento, às políticas do governo, à solidão, aos dotes gastronômicos e até mesmo à vacinação invadiram as redes.
Para a psicóloga Sandra Maria Souza e Silva, proprietária da Sandra Coach e Consultoria, isso ocorre porque o meme tem um potencial muito grande de comunicar ideias e expressar sentimentos, além de ser uma forma irônica de falar sobre um assunto delicado.
“Os memes brincam com fracassos e angústias e são uma forma de desabafo. Através do meme, as pessoas têm coragem de falar coisas que não falariam ou não brincariam pessoalmente. Prova disso é que os memes extrapolaram as redes sociais e passaram a ser usados também por instituições e organizações para se comunicar com o público, que gosta desse viés mais engraçado”, avalia a psicóloga.
Do ponto de vista da psicologia, Sandra Maria Souza e Silva explica que o meme tem a capacidade de expressar sentimentos úteis e, inclusive, pode ajudar a lidar com problemas e dificuldades.
“A psicologia já identificou que, diante de uma dificuldade emocional, de uma situação difícil ou desagradável, que nos deixa angustiado ou ansioso, o ser humano tende a criar mecanismos de defesa psicológica. Usamos esse recurso de maneira inconsciente, como forma de negar ou amenizar a situação, buscando dar outra conotação”, explica a psicóloga. Para ela, o meme pode ajudar muito no entendimento de que uma determinada situação é um problema coletivo e não individual ou isolado, ajudando no reconhecimento de que “não é só comigo que determinadas coisas acontecem”.
“O meme funciona muito neste sentido. Quando fazemos piada com um assunto de impacto coletivo, é uma forma de entendermos que pode ser uma situação ruim, mas que está todo mundo dentro. Achamos graça diante da dificuldade que temos de resolver aquilo. Esse pode ser um mecanismo de defesa, uma forma de amenizar ou de não tomar consciência do problema em nossa vida”, avalia a psicóloga.
Além disso, segundo Sandra Maria Souza e Silva, por lançar mão do bom humor, o consumo e produção de memes têm capacidade de mexer com a fisiologia humana, uma vez que é capaz de estimular a produção de hormônios como a serotonina, relacionada ao prazer, à alegria, à satisfação e à felicidade.
“Vendo uma imagem engraçada que tem relação com um problema, você evoca um bem-estar, ri e se descontrai. Isso pode ajudar a encarar e a ver o lado positivo da situação. O humor é capaz de produzir hormônios que nos tornam mais tolerantes e passivos, nos ajudando a aprender a se automotivar e a se conhecer melhor diante das dificuldades. Achar graça diante da própria situação facilita a resolução dos problemas e pode ajudar a encarar as coisas com mais leveza”, justifica a psicóloga.
Porém, Sandra Maria Souza e Silva faz um alerta: é preciso estar atento para não transformar tudo em piada. O excesso de humor pode prejudicar os pensamentos e distorcer a realidade.
“Na psicologia são identificados vários transtornos relacionados às variações de humor, que vão desde a total ausência de humor até um bom humor exacerbado. Por isso, vale a máxima: o que é muito não é bom. O excesso de bom humor pode prejudicar as atitudes ou pensamentos e distorcer a realidade, evitando a tomada de ações e a busca por uma resolução”, pondera.
Nestes casos, o uso de memes pode funcionar como uma quebra na conexão com a realidade, acentuando características negativas do indivíduo. “Quando a pessoa acha graça em tudo, pode se tornar exageradamente despreocupado, procrastinador, ao ponto de que essas atitudes interfiram em seu desempenho na sociedade, no trabalho e na família. E mais: o excesso de bom humor pode não só prejudicar a si próprio, mas também às pessoas que estão ao seu redor. O bom humor é bem-vindo, mas em uma dosagem real”, reforça a psicóloga.
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