Se a proteção na internet é, por si só, um tema importante, quando falamos de crianças e adolescentes, ela ganha uma relevância extra. Isso porque esse público está cada vez mais exposto a conteúdos online, sendo necessário que exista uma proteção eficaz contra abusos e práticas comerciais enganosas.
A legislação brasileira prevê direitos específicos para crianças e adolescentes. Por analogia, destaque para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e para o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Esse último, inclusive, protege crianças e adolescentes em caso de acidente de consumo e de prática abusiva. Inclusive, no que tange à propaganda que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança.
Contexto internacional
Há também a Resolução n° 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Ela define o conceito de comunicação mercadológica e a abusividade de seu direcionamento às crianças e adolescentes. No contexto internacional, há a Recomendação da OCDE sobre Crianças no Ambiente Digital, atualizada em 2021. Em setembro do ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou o Global Digital Compact. O instrumento visa garantir a proteção e o empoderamento das novas gerações em um ambiente digital seguro. Esse pacto aborda questões críticas, como privacidade, acesso à tecnologia, educação digital e proteção contra abusos online.
Na busca por proteger crianças e adolescentes em contextos legislativos, ocorreu o Dia da Internet Segura no Brasil. O principal evento de Internet Segura do Brasil alcançou sua 17ª edição em São Paulo. O encontro foi organizado pela Safernet Brasil, Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Tempo de tela
O primeiro dia (11/2) ficou marcado por Fábio Senne, coordenador-geral de pesquisas do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrando que houve aumento de usuários crianças e adolescentes na internet. Não só no uso propriamente dito, mas também na intensidade de uso. Hoje, 93% da população brasileira de 9 a 17 anos faz o uso diário da internet.
Fábio Senne tratou do assunto no painel “Políticas Públicas para a Segurança Online de Crianças e Adolescentes no Brasil: Indicadores e Experiências à Luz dos Frameworks Internacionais”. A atividade contou com a participação de Nathalie Fragoso e Silva Ferro, diretora na Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça de Segurança Pública. A moderação ficou por conta de Thiago Tavares, diretor presidente da SaferNet Brasil. Na ocasião, a principal novidade foi a apresentação das “Estatísticas TIC para crianças até 8 anos de idade”, do Cetic.br.
Outro dado interessante mostrado por Fábio Senne é que no decorrer dos últimos 10 anos, houve uma diminuição da idade do primeiro acesso à internet. Essa tendência indica que mais jovens estão se tornando familiarizados com a tecnologia em idades cada vez mais precoces. Ademais, 81% das crianças e adolescentes tem acesso a celular mais cedo, o que pode ter impactos significativos em sua educação e desenvolvimento social.
Fácil acesso
“O celular foi um grande propulsor dessa nova realidade, além da televisão, que hoje oferece fácil acesso à rede. A pesquisa mostra que o computador é importante, mas ele cai nesse conceito quando olhamos para classe social. Em suma, as classes mais altas têm mais acesso a múltiplos dispositivos”, disse Fábio Senne.
O levantamento foi produzido a partir das bases de dados das pesquisas TIC Kids Online Brasil, em conjunto com a TIC Domicílios. O período de abrangência é de 2015 a 2024.
Crianças abaixo dos 8 anos
Pela primeira vez, a TIC Kids Online Brasil abordou o comportamento de crianças abaixo de 8 anos no que tange ao uso da internet. Para obter informações, os pesquisadores levaram em conta três indicadores, questionando o morador do domicílio maior de idade sobre:
- Uso de internet nos últimos três meses;
- Posse de telefone celular para as crianças de zero a dois anos; de três a cinco anos; e de seis a oito anos;
- Uso de computador nos últimos três meses.
Ficou comprovado que entre 2015 e 2024, há crescimento de uso da internet entre crianças de zero a oito anos, em todas as faixas etárias. Nas crianças de seis a oito anos, o percentual foi de 97%, nas classes A e B. Na sequência, aparece a classe C, com 88%. E, por último, as classes D e E (69%).
“Na faixa de zero a dois anos, existe um equilíbrio no uso da internet, obviamente por causa da presença conjunta de adultos. À medida que as crianças avançam para a faixa etária de três a cinco anos, o uso da internet se expande”, explicou Senne.
Desigualdade social
Em 2015, 9% das crianças de 0 a 2 anos, 26% das de 3 a 5 anos e 41% das de 6 a 8 anos eram usuárias de internet, conforme a declaração de um morador adulto do mesmo domicílio. Em 2024, esses indicadores alcançaram 44%, 71% e 82%, respectivamente.
Por fim, a pesquisa evidenciou que o acesso à internet no Brasil evidencia a desigualdade social, afetando tanto o uso de computadores quanto a conectividade das crianças de zero a oito anos. “É fundamental que tanto governos quanto empresas realizem ações conjuntas para criar ambientes digitais apropriados para cada etapa do desenvolvimento infantil, assegurando a proteção e a promoção dos direitos das crianças também no espaço digital”, pontuou Fábio Senne.
Analisando os dados da pesquisa, Nathalie Fragoso e Silva Ferro disse que as informações revelam uma tendência absolutamente importante, em um momento onde o país está olhando para estratégias voltadas à primeira infância no que diz respeito ao uso da internet e de celulares. “As crianças estão cada vez mais expostas a dispositivos digitais, o que levanta a necessidade de garantir que esse acesso seja seguro e benéfico. E embora a tecnologia possa ser uma ferramenta poderosa para a educação e o desenvolvimento social, é fundamental que haja diretrizes claras para o seu uso”.
Políticas públicas
Chamou a atenção de Nathalie, que recebe os dados da pesquisa como quem recebe “diretrizes para práticas política pública”, que são vários os fatores que colaboram para a intensificação do consumo de internet na primeira infância. Entre eles, a fácil acessibilidade de dispositivos digitais e o aumento das plataformas de conteúdo voltadas para crianças.
“Além disso, vimos que com a popularização de smartphones, as crianças têm se tornado cada vez mais adeptas ao uso de tecnologia desde muito cedo”, afirma. “E também que o conteúdo digital vem se diversificando significativamente, oferecendo uma variedade de aplicativos, jogos e vídeos que atraem a atenção dos pequenos, muitas vezes superando as interações presenciais”.
O grande desafio é conseguirmos nomear uma prática como abusiva ou arriscada, para que ela seja percebida. Então, ela mostrou algumas práticas normativas que o Ministério da Justiça e Segurança Pública vem adotando. Tudo com base na Constituição Federal, que trata como prioritária a proteção de crianças e adolescentes, e a implicação do Estado, da família e da sociedade para garantir isso, em uma missão compartilhada visando um desenvolvimento pleno e saudável.
Mais jovem, maior vulnerabilidade
Em segundo lugar, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que diz, em seu artigo 78: “As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada”. Existem várias legislações, como a Lei nº 14.426/04, que tornou obrigatório que hotéis, pensões, pousadas e albergues mantenham ficha de identificação de crianças que se hospedem nos estabelecimentos.
No que diz respeito aos riscos digitais, ela conta que estão emergindo núcleos de especialização que aprimoram a capacidade de identificação e resposta a esses desafios. Um exemplo disso é a própria criação da Secretaria de Assuntos Digitais, em novembro de 2023, em resposta a uma gravíssima emergência de segurança pública que envolvia crianças e adolescentes. Um dos focos primordiais é, portanto, a proteção dessa faixa etária, através do estudo e da implementação de medidas preventivas.
A Estratégia Brasileira de Educação Midiática se destaca como uma das principais ferramentas de prevenção contra a desinformação, com o objetivo de capacitar os cidadãos a navegar de maneira crítica e consciente no extenso espaço informativo atual. Esse esforço se torna fundamental, uma vez que a disseminação de informações falsas e enganadoras pode causar impactos significativos na opinião pública e, por consequência, na democracia.
Pornografia infantil
Mais de um milhão de usuários do Telegram no Brasil utilizam o aplicativo para acessar pornografia infantil, segundo um relatório da SaferNet, enviado ao Ministério Público Federal. O relatório também revelou que o número de denúncias de grupos e canais com imagens de abuso sexual infantil aumentou 78% entre o primeiro e o segundo semestres do ano passado.
De acordo com o estudo, houve um aumento de 78% nas denúncias de grupos e canais do Telegram envolvidos com abuso e exploração sexual infantil entre os dois semestres de 2023. O número de usuários desses grupos aumentou de 1,25 milhão para 1,4 milhão, enquanto o número de canais passou de 849 para 1.043, um crescimento de 19%. No momento do relatório, 349 desses grupos ainda estavam ativos. O conteúdo é comercializado dentro do aplicativo através de criptomoedas, por serviços financeiros terceirizados, muitos dos quais estão sediados na Rússia, Ucrânia, Hong Kong e Chipre. No Brasil, a posse, exposição e venda de material de abuso infantil é crime.
Educação digital
Thiago Tavares, presidente da SaferNet, destacou que os problemas relacionados ao conteúdo criminoso no Telegram são graves, com a plataforma apresentando baixo nível de conformidade às leis brasileiras e fraca moderação de conteúdo.
O Google foi representado no evento pela gerente de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google Brasil, Flávia Annenberg. A executiva anunciou que a empresa está se preparando para lançar uma série de iniciativas de educação digital para pais e um projeto de experiência supervisionada para adolescentes ainda neste ano.
Estratégias
Outras estratégias são: a Operação Escola-Segura, que visa assegurar um ambiente escolar mais seguro e propício ao aprendizado; e o amadurecimento do Estado brasileiro para lidar com repressão de exploração sexual de crianças e adolescentes do Brasil; além de iniciativas como formação continuada de agentes, alinhamento de melhores práticas, disseminação de conhecimento dentro da rede de segurança pública e também do sistema de proteção, que é mais amplo do que o sistema de segurança pública.
A mesa de abertura do Dia da Internet Segura foi formada por Thiago Tavares, diretor presidente da SaferNet Brasil; Demi Getschko, presidente do NIC.br e conselheiro notório saber CGI.br; Fernanda Teixeira Souza Domingos, procuradora regional da República (MPF); Flávia Annenberg, gerente de Relações Governamentais e Políticas Públicas do Google Brasil; Mônica Steffen Guise, Meta Public Policy; e Priscilla Silva Laterça, head de safety do TikTok Brasil.
Em linhas gerais, os participantes acreditam que os mais jovens são especialmente mais vulneráveis a diversas ameaças online. Um dos principais desafios é a exposição a conteúdos inapropriados, que podem afetar o desenvolvimento emocional e psicológico dos jovens. Além disso, foi possível ver que o cyberbullying vem se tornando uma preocupação crescente, pois as interações virtuais podem levar a situações de assédio que têm consequências graves.
Outro aspecto considerado pelos especialistas é o tempo de tela que as crianças e adolescentes passam em dispositivos eletrônicos. A exposição excessiva pode afetar o desenvolvimento social e emocional, já que limita a interação face a face com colegas e familiares. A American Academy of Pediatrics, inclusive, recomenda que as crianças até dois anos de idade não utilizem telas, exceto para videochamadas, enquanto crianças entre dois e cinco anos devem ter o uso limitado a uma hora por dia sob supervisão de um adulto.
Lançamentos
Outro destaque foi a divulgação das estatísticas de 2024 da Central Nacional de Crimes Cibernéticos e do canal de ajuda Helpline. Ambas iniciativas são da Safernet Brasil, que atua no combate a violações dos Direitos Humanos no ambiente online.
Além disso, houve o lançamento de recursos voltados para a segurança e cidadania digital. Um dos destaques é o novo Jogo de Tabuleiro Internet Segura. Ele foi desenvolvido pelo Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil (CERT.br/NIC.br). Na ocasião, o Jogo foi apresentado pela analista sênior de segurança do CERT.br, Miriam von Zuben. “De maneira lúdica, crianças terão a chance de aprender sobre temas como privacidade, cyberbullying e situações de risco no ambiente online”, disse.
O material está disponível gratuitamente no portal Internet Segura (https://internetsegura.br/).
Por sua vez, a Safernet apresentou um levantamento sobre os currículos de Cidadania Digital no Brasil.
População desconectada
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) também apresentou suas iniciativas para promover conectividade e habilidades digitais, focando especialmente em crianças, adolescentes e mulheres. Com cerca de 20% da população ainda desconectada, a Cristina Camarate, superintendente de relações com consumidores na Anatel, ressaltou a importância da capacitação digital para uma inclusão plena e identificou uma disparidade de gênero no uso da Internet.
Para combater essa diferença, a autarquia planeja capacitar 5 milhões de mulheres em habilidades digitais. Projetos como “Meninas em TI” incentivam a participação feminina no setor de tecnologia. Enquanto isso, ações voltadas à segurança digital de crianças incluem teatro sobre cyberbullying e uma apresentação sobre uso responsável das redes sociais.
Cristina enalteceu ainda parcerias com o Ministério Público, a União Internacional de Telecomunicações e o setor privado como essenciais para o sucesso dessas iniciativas. Além disso, a inclusão digital dos idosos é uma prioridade, com esforços para garantir acessibilidade à cidadania digital.
Por fim, em 2025, a Anatel pretende ampliar suas parcerias e iniciativas para beneficiar mais crianças e reduzir desigualdades digitais.