É inacreditável a capacidade que o país tem demonstrado para ridicularizar qualquer tipo de convenção, sistema, prática ou política.
Os primeiros sinais surgiram em 2013, ano-véspera da Copa do Mundo de futebol que O Brasil iria sediar. Milhões de pessoas foram às ruas pedindo serviços públicos no “padrão FIFA”, que pressupunha obras de qualidade incontestável, com alto nível de exigência técnica. Mais ou menos contemporâneo foi o surgimento da Operação Lava Jato, destinada a ser o maior conjunto de investigação, acusação e levantamento da corrupção no país.
De lá para cá, o país tem sido testado sobre os limites de sua resistência a si mesmo. Talvez não haja caso de nação tão empenhada em se boicotar quanto a brasileira. É incrível constatar como nos dedicamos minuciosamente a desconstruir qualquer convenção, instituição, ideia, sistema, prática ou política sem escrúpulos, sem pudor, sem razão. Nada parou em pé.
Comecemos por um exemplo emblemático: a instituição da Presidência da República: desde a redemocratização, elegemos quatro presidentes, dois foram depostos por impeachment, um está com cinco processos na justiça e uma condenação em primeira instância e o outro, que restou, foi o motivador da eleição do condenado. O Supremo Tribunal Federal, agora resolve opinar sobre tudo e seu estilo boquirroto fez os ministros togados tornarem-se alvos fáceis para toda sorte de ilações. Fora isso, é um colegiado esquizofrênico, que a toda hora costuma desdizer o que deliberou, trazendo insegurança jurídica nos momentos mais impróprios.
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O nosso capitalismo, então, fez-se à base de empresas especialistas em pedir favores ao governo. Criamos “campeões nacionais” em artifícios ilegais, permitindo a formação de corporações unicamente competentes em usar dinheiro público para financiar megalomanias e campanhas políticas de políticos que se vendem.
Nosso “sistema” de saúde é certamente um dos piores arranjos jamais conjurados por qualquer povo ou governo em toda a história. Consegue custar caro e ser cada vez mais caro e vive em guerra, com as facções pública e privada tentando transbordar clientes uma para a outra, já que preferem preservar os recursos que têm sem atender ninguém.
Sim, criamos um sistema de saúde que só é solvente e rentável se ninguém utilizá-lo. Ai de nós se precisarmos recorrer a médicos, exames ou internações. O médico cobrará um “por fora”, ou atenderá de modo displicente em três minutos, pedirá exames desnecessários para diagnosticar o que ele sabe que não é a doença. O paciente tentará agendar exames que serão realizados semanas adiante e os laudos não serão confiáveis. Se tiver de ser internado, ou será tratado como um fardo ou será coagido a pagar mais um “por fora” para comprar um tratamento digno.
Nosso sistema eleitoral é uma maluquice inexplicável. Votamos em “coligações partidárias” que se formam para conquistarem tempo de televisão, cargos e verbas no governo, nunca por afinidade ideológica. E elegemos deputados com 100 votos, puxados por um candidato midiático que ganha 2 milhões de votos, por conta das coligações amalucadas.
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Também desmoralizamos o GPS, tecnologia interessante e útil que permite mapear ruas e caminhos para nos dar a direção certa. O GPS em São Paulo é basicamente inútil, pois não consegue dar conta de um sistema viário mal ajambrado, com endereços errados localizados em ruas desconexas.
Desmoralizamos os Jogos Olímpicos, comprando nossa indicação desavergonhadamente, corrompendo dirigentes africanos e deixando um legado ruinoso com equipamentos em decomposição em uma cidade falida, o outrora lindo Rio de Janeiro.
Conseguimos desmoralizar a indústria do petróleo, ao transformar uma empresa gigantesca como a Petrobras em um valhacouto de bandidos, alegremente voltados para retirar dinheiro de obras inúteis ou calamitosas como refinarias em Pasadena, mais conhecidas como ruivinhas de Passagrana…
Também desmoralizamos nosso próprio futebol, que já foi sinônimo de beleza e talento, ao sermos surrados em uma semifinal de Copa, em pleno Mineirão, para a Alemanha, por inacreditáveis 7×1.
Não contentes com nossa capacidade de avacalhar qualquer coisa, desmoralizamos até o bunker onde se guarda dinheiro roubado. Nada de caixas fortificados, cofres seguros e segurança armada. Um corrupto guardou mais de R$ 50 milhões em malas e caixas de papelão num apartamento em Salvador que nem grade na entrada tem…
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A última desmoralização foi o instituto da delação premiada, arma poderosa do direito em nações civilizadas, mas que aqui virou uma arena de criação de manchetes em troca de tornozeleiras eletrônicas. Uma prova recente: ao acreditar em um bandido rematado, o salsicheiro vingador, da empresa JBS, campeã nacional surgida do conluio entre açougueiros e um partido político, a Procuradoria Geral da República (PGR), desmoralizou-se ao aceitar como provas gravações levianamente armadas para supostamente entregar o presidente da república como corrupto – desmoralizando por sua vez a retomada econômica, com uma crise política.
Vimos que o açougueiro não procurava remissão, mas simplesmente queria pechinchar liberdade em troca de palavrório inútil. No caminho, desmoralizou um presidente que resolveu desmoralizar sua autoridade recebendo o suíno-corrupto em sua residência fora da agenda oficial. A Procuradoria assentiu em sua auto-desmoralização, ao aceitar gravações sem perícia, ilações sem provas e chegou ao cúmulo do delírio incompetente ao ver que um de seus membros foi cooptado pelo bandido que supostamente buscava regeneração, zombando de um povo desmoralizado.
Até quando vamos persistir nessa tolerância com a esculhambação?
É mais do que chegada a hora de darmos um basta em nosso apego a essa desmoralização infinita. A não ser que queiramos enfim, desmoralizar até mesmo essa indignação e continuar deixando tudo como está para ver como fica. E seguirmos adiante, até que não reste rigorosamente nada para desmoralizarmos.