NOVAREJO mergulhou na economia chinesa desde a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung até o império do Alibaba, de Jack Ma, para entender como o gigante asiático saiu de uma economia agrária ineficiente para se tornar o maior varejo do mundo. Confira o primeiro capítulo da série sobre a China.
O varejo chinês vai se consagrar como o maior mercado do mundo ao fim de 2019, ultrapassando o americano. A China deve fechar o ano com um faturamento de mais de 5,6 trilhões de dólares no varejo, 100 bilhões acima do resultado dos Estados Unidos, segundo o estudo “Retail & Ecommerce Sales – China”, divulgado pela eMarketer no começo deste ano.
Em uma população de 1,386 bilhão de pessoas, muita gente ainda está de fora do mercado de consumo. E as que já estão, têm potencial para consumir mais. O varejo chinês recebeu mais 35 milhões de consumidores só no espaço entre setembro de 2017 a setembro de 2018, somando 636 milhões de pessoas que consomem com frequência.
Boa parte do consumo na China é realizado pelo celular, e essa maneira de consumir se torna cada vez mais popular: 33 milhões de pessoas passaram a usar o smartphone para diferentes tarefas entre setembro e dezembro do ano passado, chegando a um total de 699 milhões de usuários, de acordo com o relatório de resultados de 2018 do Alibaba, o maior player online da China.
Em alguns segmentos importantes da economia, os chineses já lideram o consumo. Diferentemente do que se poderia imaginar, os itens nos quais eles lideram são os que têm maior valor agregado, como smartphones e automóveis. Ninguém compra mais carros e celulares que os chineses no mundo. A adesão dos chineses aos produtos mais caros contradiz afirmações que relacionam o crescimento do País a uma mão de obra mal paga.
“Nos últimos anos, os consumidores na China experimentaram rendimentos crescentes, catapultando milhões para a nova classe média”, afirma Monica Peart, diretora sênior de previsão do eMarketer. “O resultado foi o aumento acentuado no poder de compra e o gasto médio por pessoa”, completa. A escalada social na China ao longo das últimas décadas e o impacto sobre o consumo será um dos temas abordados nos próximos capítulos desta série.
Faturamento do varejo chinês para 2019: US$ 5,6 trilhões
US$ 100 bilhões acima da estimativa para os EUA
Fonte: eMarketer – “Retail & Ecommerce Sales – China”
O relatório do eMarketer aponta ainda que a China deve abrir vantagem em relação aos Estados Unidos, com seu varejo crescendo acima do americano pelo menos até 2022. Este pode ser o início de uma nova era, com a superação econômica dos Estados Unidos e a China ocupando o lugar de maior império do planeta.
Hoje, os americanos têm US$ 20 trilhões em PIB contra US$ 14,1 trilhões da China, que ocupa o segundo lugar entre as maiores economias do planeta. Um estudo do HSBC Holdings Plc de agosto do ano passado apontou, porém, que a China deve ser a maior economia do mundo até 2030, quando seu PIB chegará a 26 trilhões de dólares e o dos Estados Unidos baterá 25,2 trilhões. O FMI também havia divulgado um estudo com o mesmo diagnóstico. Se confirmada a projeção, será a primeira vez desde 1946, com o fim da Segunda Guerra Mundial, que os EUA perderão o posto de maior economia do planeta.
A China espera chegar ao topo impulsionada principalmente pelo desenvolvimento dos seus parques tecnológicos, que pipocam por todo o seu território. Apesar de buscar a liderança pór vias pacíficas, não significa que a ascensão será tranquila e sem oposição. Uma prova disso são os embargos econômicos que os Estados Unidos começaram a impor ao gigante chinês desde o fim do ano passado. Esse assunto será aprofundado em um capítulo exclusivo sobre a guerra comercial entre as duas potências. E o comércio chinês já começa a sentir os efeitos dessas restrições. O varejo chinês deve desacelerar em 2019, crescendo 7,5% contra os 8,5% de 2018. Ainda assim, bem acima do crescimento americano, que deve ser de 3,3% para este ano.
Roberto Dumas, professor de economia do Insper, afirma que as contas feitas pelo FMI e pelo HSBC que colocam a China como a maior economia do mundo em 11 anos levam em conta um crescimento médio anual de 6% para a China e de 2% para os Estados Unidos até lá.
“Mas pode haver um monte de intempéries que podem jogar a China para cima antes do esperado, ou o contrário, com uma guerra comercial que prorrogue essa ascensão”, alerta.
O professor ressalta que a ascensão da China ao posto de maior economia do mundo teria mais impactos geopolíticos do que propriamente econômicos. Ele afirma que o mais relevante para avaliar a ascensão do consumo na China é o PIB per capta, ou seja, a divisão do PIB pela população.
“Em PIB per capta, os EUA estão na 11ª colocação, com 59,5 mil dólares. A China é o 68º país em termos de PIB per capta, segundo os dados de 2017 do FMI. Isso mudou um pouco, mas ainda não de maneira relevante”, afirma o professor.
O PIB per capta da China é de 8,8 mil dólares, ainda longe dos 22 mil a 25 mil dólares per capta apontados pelo professor como a barreira que separa os países desenvolvidos dos emergentes. Portanto, mesmo que chegue ao topo, a China ainda não terá garantido seu passaporte para o mundo desenvolvido.
Em seu livro “China’s disruports”, o CEO da consultoria Gao Feng, Edward Tsé, afirma que o crescimento chinês desde a abertura econômica instalada no País em 1978, com a morte de Mao Tsé-Tung e a ascensão de Deng Xiaoping ao cargo de primeiro-ministro, foi suportado por investimentos públicos em estradas e aeroportos. Além da infraestrutura, a China teve que melhorar seu sistema financeiro para poder desenvolver a sua economia e, em especial, o seu varejo, atravancado pela falta de acesso das pessoas a crédito e serviços bancários. A estatal China UnionPay, que gerencia a rede de cartões do País e é de propriedade de cinco dos maiores bancos estatais chineses, começou a instalar terminais em pontos de vendas por toda a China, em grandes, médios e pequenos estabelecimentos comerciais.
A estabilização do setor financeiro foi o ponto inicial para que os consumidores chineses passassem a ter acesso a bens duráveis via financiamento, como carros, eletrodomésticos e móveis. Mas o boom do varejo só foi possível quando as grandes empresas privadas passaram a desenvolver suas próprias soluções de pagamento, como o Alibaba que, antes de lançar o AliPay, era um portal de vendas B2B que operava no vermelho. Depois de lançar seu próprio meio de pagamento, deslanchou e acabou por tirar o todo-poderoso eBay do país.
A hegemonia sobre o online
A ascensão da China se deve, entre outros fatores, a uma invenção americana, a internet. O comércio eletrônico é um dos principais impulsionadores da economia de varejo do país, com vendas crescendo acima de 30% em 2019, atingindo US $ 1,989 trilhão. Mais de 35% das vendas no varejo da China ocorrem na internet. É, de longe, a taxa mais alta do mundo.
Grande parte do desenvolvimento do e-commerce se deve ao Alibaba e à Tencent, que arrumaram maneiras de catapultar transações via internet em um país onde praticamente não existe cartões de crédito e débito. O resultado disso é que as duas empresas se tornaram as duas maiores da China, ultrapassando a China Mobile, de telefonia. Essa mudança no topo da cadeia alimentar das empresas chinesas ilustra bem a mudança de relevância dos setores na economia local. As vendas de smartphones começam a esfriar, enquanto os produtos para celulares, tal como os superapps do AliPay (do Alibaba) e o WeChat (da Tencent), crescem exponencialmente. O desenvolvimento das tecnologias de pagamento que desprezam o dinheiro e o cartão será aprofundado nos próximos capítulos desta série.
Para este ano, espera-se que quase 2 trilhões de dólares em gastos do consumo das famílias sejam transacionados pela internet, o que significa 35% do total. Nos Estados Unidos, essa participação deve chegar a 11%. A China aprendeu com os americanos não só a usar a internet, mas a trabalhar datas específicas no varejo online para catapultar as vendas do varejo. O Dia dos Solteiros na China, principal data de consumo pela internet no País, é uma espécie de Black Friday oriental, com uma diferença considerável, fatura o dobro da Turkey Five, que é a sequência de datas entre o Dia de Ação de Graças e a Cyber Monday nos EUA.
O Dia dos Solteiros (também conhecido como Double Eleven, porque acontece no dia 11 de novembro) foi um aprimoramento do Alibabapara um evento universitário criado nos anos 1990. Sozinho, o Alibaba faturou 30,8 bilhões de dólares no dia 11 de novembro do ano passado. No primeiro minuto do festival de vendas, a gigante varejista já havia passado a barreira de US$ 1 bilhão em vendas. Em pouco mais de uma hora, o faturamento chegou a US$ 10 bilhões. O Alibaba capturou 68% das vendas totais da data em 2018, que foi a maior onda de consumo que o mundo já viu em sua história. No total, o dia foi responsável por US$ 45 bilhões em faturamento, com mais de 90% de vendas via celulares.
As maiores marcas do varejo chinês*
1. Alibaba (2ª no total) 88 bilhões de dólares
2. Jd.com (12ª) 14,579 bilhões de dólares
3. Suning (30ª) 3,394 bilhões de dólares
4. Vip.com (53ª) 1,875 bilhão de dólares
5. Yonghui Superstores (76ª) 840 milhões de dólares
Fonte: BrandZ / Kantar Millward Brown (incluindo dados da Bloomberg) *Posição relativa ao total de empresas chinesas de todos os setores
O artigo da McKinsey “O que o Singles Day pode nos dizer sobre como o varejo está mudando na China” aponta um arrefecimento do crescimento da data e sugere que, tanto as plataformas de varejo quanto a indústria terão que olhar para novos caminhos de crescimento para o Dia dos Solteiros. Isso poderia incluir a busca mais agressiva de novos mercados fora da China. O principal mercado almejado pelos chineses é o americano. O american way of life está ajudando a China a avançar para o topo. Boa parte do que o país asiático exporta já é consumido pelos americanos.
A China se tornou a indústria do mundo mas, em especial, a indústria dos Estados Unidos. Empresas gigantes americanas como Apple e Nike usam fábricas chinesas para produção do que é comercializado no mundo. Boa parte desses produtos feitos na China volta para ser consumido em território americano.
Um levantamento do Banco Mundial de 2017, divulgado em maio de 2018, apontou que os Estados Unidos têm o maior mercado consumidor do mundo, comprando 26% de tudo que é produzido. Em 2017, os consumidores americanos gastaram mais de US$ 12,5 trilhões, quase o triplo do registrado pela China, que é o segundo maior mercado, com quase US$ 4,5 trilhões.
Esse fato também deve ser levado em conta ao analisar a política de proteção dos Estados Unidos ao sobretaxar produtos chineses que chegam ao País. Uma das formas que os EUA encontram para proteger sua hegemonia é tentar recuperar o mercado interno. Apesar da relevância do consumo americano na economia chinesa, o mercado interno chinês é cada vez mais representativo. Em 2009, o consumo respondia a 35% do PIB, passando para quase 40% em 2017 devido às políticas públicas de aumento do salário e de incentivo ao consumo. Apesar desse avanço na renda e no consumo, a China ainda é um dos países mais desbalanceados do mundo na comparação consumo/PIB, segundo o professor Roberto Dumas, do Insper.
“O chinês consome muito, mas os investimentos ainda correspondem a 45% do PIB. É necessário que o investimento cresça aquém do consumo, e isso o Xi Jinping (presidente chinês) vem trabalhando desde 2012”, avalia. A título de comparação, o Brasil tem um consumo que corresponde a 68% do PIB.
O professor destaca a política de valorização do salário como um dos fatores impulsionadores da participação do consumo no total da economia, mas alerta que só aumentar o salário nominal não é suficiente. “O que tem que fazer é aumentar o salário acima da produtividade. Se aumentar abaixo, o país continua sendo um polo importador, tirando renda da família. A política pública vigente implica perder competitividade de modo a fazer com que o País consuma mais do que ele mesmo está produzindo”, afirma.
Números da Gavekal e da Ceic Data Base apontam que, em 2010, a produtividade do trabalhador chinês subiu 10%, contra 5% da média salarial chinesa. Em 2011, porém, a mudança foi profunda. O salário médio subiu 17%, contra quase 8% do aumento da produtividade. Depois de uma queda em 2012, o salário voltou a subir bem acima da produtividade em 2013 e 2014. “Agora, a mão de obra começou a ficar mais cara e esse é o principal motivo de transformação de uma economia, que passa a estar voltada para o consumo”, diz Dumas.
O crescimento de 6,6% do PIB em 2018 é o menor desde 1990, o que pode afetar a mudança de compasso da China de uma economia de investimento público para uma de gasto privado. Em 2017, o crescimento já havia sido mais discreto, 6,8%. Para 2019, o crescimento pode baixar mais um pouco: a estimativa é de 6,3%. Além disso, o resfriamento do crescimento de toda a economia chinesa depois de três décadas de farto crescimento é acompanhado por um endividamento explosivo. Apesar disso, Dumas vê o crescimento da China para os próximos anos como sustentável.
“O Ocidente tem dificuldades para entender isso, que a China vai mostrar PIBs cada vez menores, mas isso se deve ao fato de já não ser um crescimento anabolizado, com enorme participação dos investimentos. E, sim, mais voltado para consumo, sem cidade fantasmas e sem overcapacity”, prevê.