O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, no dia 26 de junho, uma nova tese que responsabiliza as redes sociais por conteúdos ilícitos postados por terceiros. Como resultado, o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que servia como base jurídica de um dos pilares da internet brasileira, foi “cancelado”. Importante destacar que esse dispositivo condicionava a responsabilização das plataformas digitais à necessidade de ordem judicial.
O artigo 19 determinava o seguinte: “O provedor de aplicações de internet será responsabilizado civilmente, conforme o artigo 21 do Marco Civil da Internet, pelos danos resultantes de conteúdo gerado por terceiros em situações de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo da obrigação de remoção do conteúdo.”
Com a nova diretriz, uma simples notificação extrajudicial é suficiente para obrigar redes sociais como Facebook, X, Instagram e YouTube a remover conteúdos considerados ilegais, sob pena de enfrentarem responsabilização. Para os usuários das plataformas, a pergunta que fica é: será que a luta contra a desinformação vale o risco de comprometer nossas liberdades fundamentais na rede?
Impactos para o usuário das redes
Segundo Alexander Coelho, sócio do escritório Godke Advogados e especialista em Direito Digital, IA e Cibersegurança, a decisão é histórica. Entretanto, como toda mudança significativa, traz tanto promessas quanto riscos. “A promessa é nobre: combater a desinformação, o discurso de ódio e proteger direitos fundamentais. Mas o risco é estrutural: em nome de proteger a democracia, não estaremos entregando seu futuro aos algoritmos e às assessorias jurídicas das grandes plataformas?”, questiona o advogado.
Com o artigo 19 do Marco Civil anulado, a partir de agora, as empresas privadas assumem uma função que normalmente é jurisdicional, decidindo o que deve ser retirado do debate público, com critérios que frequentemente são obscuros e voláteis. “O resultado? Um ambiente propenso à moderação opaca, à remoção automática e ao silenciamento preventivo. O temor de sanções pode se tornar uma ferramenta mais poderosa que a censura direta”, esclarece Coelho.
Enquanto o Parlamento ainda discute uma lei específica para a regulação da IA, da moderação e da responsabilidade digital, o Judiciário age antes e legisla. “O problema não está na intenção, mas no atalho institucional adotado. É verdade que as plataformas precisam ser responsabilizadas. Mas não sem garantias, sem contraditório, sem critérios objetivos e sem limites claros. A democracia digital não pode sobreviver à insegurança jurídica disfarçada de zelo moral”, ressalta o especialista.
Redes sociais: censura versus liberdade
Kenneth Corrêa é especialista em dados e professor de MBA na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Em seu parecer, a revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet é complexa e aborda um ponto crucial da internet atualmente: o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade. De um lado, ele enxerga a responsabilização como um avanço necessário. “Afinal, em casos de ataques anônimos, a falta de um CPF ou de um responsável definido gera vítimas reais e deixa um legado de impunidade.”
Entretanto, as grandes plataformas já não são ingênuas nesse debate; elas atuam globalmente com equipes robustas de moderação para lidar com conteúdo nocivo, desde terrorismo até crimes contra crianças, e essa decisão acelera a implementação dessa estrutura no Brasil. E, em síntese, Kenneth Corrêa considera importante distinguir as questões: a liberdade de expressão de um cidadão identificado é inviolável.
“Porém, é bem diferente possibilitar um megafone para discursos de ódio, notícias falsas e incitação à violência, que não são opiniões, mas sim ações que causam dano. Minha principal preocupação, entretanto, é como essa regra será aplicada no futuro. Em um país com instituições sólidas, ela oferece proteção. No entanto, em mãos erradas ou em regimes autoritários, uma ferramenta como essa pode se transformar em um poderoso instrumento de censura. É uma linha sutil que precisamos monitorar constantemente”, explica Kenneth, que também atua como diretor de estratégia na empresa 8020 Marketing.
De olho nas publicações
Thiago Muniz é um expert em geração de demanda e receita previsível. Ele também leciona na Fundação Getulio Vargas (FGV), onde ensina disciplinas relacionadas à inteligência comercial, gestão de vendas, marketing e escalabilidade nos negócios. Ao ser questionado sobre os impactos da decisão do STF para os cidadãos, ele é enfático: “Anteriormente, era aceitável utilizar as redes sociais e considerar a plataforma como mero meio de comunicação. Agora, isso mudou. E a mensagem que fica, para os usuários, é o dever de assumir uma maior responsabilidade sobre o impacto de suas publicações”.
De acordo com Thiago, CEO da Receita Previsível, essa mudança afeta tanto campanhas quanto comentários nas redes sociais. Em outras palavras, a linha tênue entre conteúdo de marca e comportamento comunitário está começando a ganhar implicações jurídicas, e o marketing, que anteriormente focava apenas em performance e notoriedade, precisa agora estar mais atento à governança, monitoramento e intencionalidade.
“O mesmo algoritmo que às vezes impulsiona, também pode se omitir, e essa decisão pode demonstrar que a falta de resposta pode acarretar consequências. Agora, resta aguardar para ver como isso irá se desenrolar. Ignorar o que ocorre no digital deixou de ser apenas um risco de imagem e passou a constituir um risco jurídico”, alerta o especialista.
Código de Defesa do Consumidor
Estabelecendo um comparativo entre o Marco Civil da Internet e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a recente decisão do STF permite a aplicação do CDC nas interações entre usuários e redes sociais, desde que se refiram a consumidores finais (aqueles que não atuam como influenciadores profissionais ou não usam essa atividade como profissão). Isso abrange casos de publicidade enganosa, fraudes ou problemas de serviço.
“É importante destacar que, apesar da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor na relação de consumo, este deve reunir o máximo de provas possível (prints, fotos, URLs) e também denunciar em órgãos oficiais de defesa do consumidor, como o Procon.” Essa é a opinião de Rafael Gusmão Dias Svizzero, presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG.
Para ele, com a decisão, os direitos dos usuários foram fortalecidos, proporcionando-lhes mais recursos jurídicos para se proteger. Isso porque denúncias de conteúdos impróprios, indevidos ou ilegais receberão mais atenção das redes sociais. Estas poderão ser responsabilizadas, mesmo que a remoção do conteúdo não seja feita por ordem judicial. “Os consumidores, além de poderem solicitar a exclusão desses conteúdos, também poderão requerer reparação civil (indenizações) e, em certos casos, responsabilização penal (caso a postagem configure um crime).”
Liberdade de expressão
Sobre a liberdade de expressão, o presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG, expõe que a decisão do STF reitera que a liberdade de expressão tem limites constitucionais. “De um lado, uma medida que parece oferecer proteção contra abusos e ilegalidades. O que significa, por consequência, que as redes sociais terão um acompanhamento mais rigoroso. Por outro lado, pode ocorrer uma forma de ‘censura privada’, onde as redes sociais removem conteúdos de forma sumária ao perceberem riscos nas postagens.”
Como resultado, na avaliação de Rafael Gusmão Dias Svizzero, a recente decisão do STF levará à diminuição de debates sobre temas sensíveis e atuais nas redes sociais. Já que tanto os usuários podem se sentir inibidos a comentar ou postar sobre determinados assuntos, quanto as redes sociais podem temer as consequências de uma eventual responsabilização.
Retrocesso
Por fim, Eduardo Augusto, especialista em tecnologia com foco em comunicação e CEO da consultoria IDK, acredita que a decisão do STF de regular as redes sociais é um retrocesso. E, para piorar, uma decadência perigosa. “Não apenas por ultrapassar os limites institucionais – julgando um tema que não lhe compete, mas por abrir precedentes graves, especialmente num País que se aproxima de uma eleição presidencial.”
Ou seja, no parecer de Eduardo, funciona da seguinte forma: sob a justificativa de “proteger”, o que se vê é o avanço de um controle silencioso sobre a opinião pública. “Uma cortina de fumaça que tenta dar aparência democrática ao que, na prática, fragiliza nossa liberdade de expressão, nossa economia e o próprio povo. O Brasil precisa de instituições que protejam o debate, não que o sufoquem. Essa decisão é ruim para o País. E como cidadão, empresário e comunicador, eu me posiciono totalmente contra. Não há liberdade quando o preço é o silêncio.”