O Brasil, país acostumado às próprias contradições e paradoxos, testemunha o surgimento explosivo de um mercado que, há cinco anos, passaria despercebido ou seria tratado como uma simples excentricidade digital. As chamadas “BETs”, plataformas digitais de apostas online, movimentam mensalmente algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões, segundo dados do Banco Central. Estou falando de uma projeção anual de estelares R$ 300 bilhões até o final deste ano. Um crescimento que impressiona até economistas acostumados a observar taxas de crescimento desse suporte somente em mercados como o chinês ou o indiano. A força desse mercado é evidente quando visitamos os corredores da feira BiS SiGMA Américas, que reuniu centenas de empresas desse ecossistema, entre os dias 8 e 10 de abril, em São Paulo.
Mas a verdadeira questão por trás desse “boom” transcende uma análise meramente econômica. Ela guarda relação profunda, intensa e emocional com as dimensões cultural e social. Em um país onde segurança pública, saúde, transporte e educação são desafios cotidianos, e onde milhões lutam por estabilidade financeira em empregos informais, a “fezinha” na BET de hoje não é apenas diversão: tornou-se, ironicamente, um dos mais acessíveis investimentos disponíveis ao cidadão médio. É a busca pelo PIX que salva o mês.
É curioso notar como o brasileiro comum se vê constantemente jogando contra as probabilidades no corre do dia a dia. É a luta por um lugar ao sol no país da renda média onde qualquer tentativa é válida. Da mesma maneira que o cidadão médio faz um sorteio para ver qual o boleto não será pago no mês (por força da restrição de renda e dos imprevistos), ele faz um rodízio no sites de apostas sempre atrás de cupons, promoções, bônus de entrada e ofertas contínuas, arriscando um pouco do dinheiro curto para ver se, quem sabe, ele não estica e salva o mês.
Por outro lado, o Brasil já registra jogadores profissionais que encaram suas habilidades nas BETs como estratégias legítimas de investimento. O cidadão, ciente de que as chances estão contra ele todo dia em que sai de casa, vê nas apostas online uma chance paradoxalmente mais justa e concreta de sucesso.
O cenário econômico explica ainda mais claramente essa dinâmica. Com mais de 73 milhões de inadimplentes, uma jornada morro acima, típica de um país onde dívida é, ora vejam, aposta de governo até para ganhar eleição, a aposta digital pode ser uma recompensa financeira para muitas famílias. Não é à toa que, por mais estranho que possa parecer, muitos apostadores brasileiros têm plena consciência dos riscos envolvidos e, ainda assim, optam por encarar as apostas como uma estratégia séria de ganho potencial.
Porém, limitar essa discussão à aposta individual é uma simplificação ingênua. Hoje, o mercado das BETs é colossal. Para além do volume movimentado em apostas, há um ecossistema robusto, formado por escritórios jurídicos especializados, empresas de tecnologia voltadas à otimização das plataformas, consultorias em jornada do cliente e sistemas de CRM sofisticados. É uma economia dentro da economia, gerando empregos e renda, buscando desenvolver estratégias de personalização e a melhor “experiência do cliente”, criando um sistema complexo que, hoje, seria quase impossível desmontar repentinamente.
Empregos, investimentos, inclusive estrangeiros, aplicações e um colossal volume de novas empresas formam um mercado de crescimento muito acima de outros setores e segmentos do nosso mercado. Mas essa pujança é vista com preconceito pela mídia tradicional e por empresas preocupadas com a drenagem de recursos de seus negócios para as apostas. É um clássico de um país de renda média, onde a chegada de novos negócios atemorizam e provocam a visão do jogo de soma zero. Para as BETs existirem, alguém perde. Ao invés de olharmos para o problema correto, a limitadíssima capacidade de crescimento potencial do país diante do espaço ocupado pelo Estado, é mais fácil acusarmos os clientes e suas escolhas individuais, os riscos que querem tomar para conquistar o upgrade do mês.
Nesse sentido, vale questionar o papel da mídia tradicional, frequentemente presa a um discurso alarmista sobre ludopatia e vício. Sem negar a importância do debate sobre saúde pública, saúde mental, o apelo do dinheiro fácil, a falácia do custo irrecuperável (típica de jogadores que insistem em “recuperar” o dinheiro perdido nas apostas), a cobertura midiática muitas vezes ignora completamente a lógica que move os apostadores brasileiros. Não se trata apenas de compulsão, mas de uma reação estratégica, uma forma excêntrica de defesa econômica num país de renda média onde oportunidades legítimas são escassas. E vale a pena tocar na ferida: quantos empreendedores e executivos insistem em aumentar perdas nos negócios, ignorando a impossibilidade de recuperar investimentos desastrados ou produtos irremediavelmente condenados? Quantos investidores teimam em não realizar perdas rapidamente, insistindo em manter posições com ações de empresas terrivelmente incapazes de gerar valor?
É inegável que as apostas digitais competem diretamente com o consumo tradicional. Ao alocar recursos escassos nas plataformas digitais, muitos consumidores deixam de direcionar dinheiro para setores mais clássicos, como varejo ou entretenimento. E aqui reside mais um paradoxo brasileiro: enquanto a renda disponível do consumidor é apertada, a resposta lógica parece ser apostar, arriscar para tentar garantir um pouco mais do que o mercado convencional pode oferecer.
No fim, é importante entender que as BETs são um fenômeno cultural e social profundo, transcendendo seu impacto econômico. As apostas digitais, longe de serem apenas passatempo ou vício, refletem a complexidade e as contradições de uma sociedade em constante busca por soluções imediatas, ainda que incertas.
Portanto, é essencial que empresas, mídia e reguladores repensem sua abordagem sobre o tema, reconhecendo o mercado das apostas como um fenômeno legítimo e significativo. Ignorá-lo, ou tratá-lo com simplificações e alarmismos, é falhar em entender as nuances de um país que continua jogando suas fichas em oportunidades incertas, mas talvez não tão injustas quanto o cotidiano. Um Brasil que, pode apostar, ainda tem seus oásis de crescimento chinês.