Egoísta, egocêntrico, viciado, workaholic, compulsivo, ambicioso, maluco, individualista, autocentrado, ganancioso, calculista são alguns dos muitos adjetivos que procuram definir o profissional de alta performance.
Certa vez ouvi em uma palestra do Tande, campeão olímpico do voleibol e ídolo esportivo nacional, que a diferença entre ele e os outros esportistas que não tiveram o mesmo desempenho estava na capacidade de deixar tudo de lado para treinar avidamente.
Exato, ele disse “tudo”.
O “tudo” significa muito para uma pessoa que foi criada dentro de uma lógica cultural, e, por conseguinte, foi ensinada a valorizar certas instâncias da vida cotidiana: ritos de passagens familiares, momentos importantes daqueles que não voltam nunca mais, nascimentos, enterros, jantares comemorativos, feriados nacionais, relações parentais, maternidade e a lista nunca terá fim para nosso insano desespero.
Ao mesmo tempo há uma motivação que nos move que está muito além da pura vaidade da conquista, um prazer inexplicável em conseguir chegar onde se programou, um chamado, uma sina completamente vocacionada que não sem sempre tem relação direta com ganhar dinheiro ou prestígio, simplesmente há uma sede de conquista para sermos melhores do que o nosso passado, lidamos com nossos limites o tempo inteiro e o nosso maior inimigo é o “eu de ontem”. De alguma forma eu sei que meu desenvolvimento impactará a milhares de famílias, e quando penso na escala, esse grupo que me cerca perde sua força, não pela sua importância, mas pelo legado e que nós podemos deixar a longo prazo.
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Lembro muito bem da minha família ficar preocupada comigo na época da defesa da tese de doutorado “o que será da Hilaine após defender a tese? O que ela vai fazer agora?” Imagine uma jovem de 18 anos que se preparou arduamente para uma longa trajetória de formação, pós-graduação, mestrado, doutorado, trabalho, pesquisa, tudo girava entorno de um dia específico: 29 de janeiro de 2015. O dia chegou, eu defendi a tese e a síndrome do ninho vazio tomou conta de mim, não houve alívio, houve a sensação de não saber o que fazer na manhã seguinte. Tudo estava feito, escrito e entregue. Até que semanas depois caiu a ficha que eu estava a deriva e ficar nesse estado me oferta dezenas de possibilidades. Dois anos me veio a consciência que eu era, enfim, uma profissional, não mais uma estudante. O que farei com o meu aprendizado? É hora de impactar o mundo com as lições que aprendi.
Pois é.… quem lê uma tese, um artigo, ouve uma palestra não faz a menor ideia do que esse resultado significa. Abraços, apertos de mão, parabenizações, tapinhas nas costas são bem-vindos, mas o que todos nós queremos, profissionais de alta performance, é compreensão na sua essência máxima, o verdadeiro entendimento do que nossa vocação nos impõe e provoca para os outros: o domínio e a disciplina de nos colocar abaixo de algo maior.
Fomos extirpados de comemorações nacionais, Natais são passados com os nativos ou em meio a livros, em cidades fronteiriças, em tribos ou favelas, ah… ou em aeroportos num esforço sobre-humano de tentar chegar a tempo. Vivemos pela metade sempre. Num dilema constante. Explico: primeiro porque nunca é ou será suficiente, segundo porque tentamos (em vão) fazer parte de uma dinâmica que nossa escolha de vida não nos permite ser o que o padrão cultural nos coage. Somos aquela visita que erra a roupa, esquece o presente do anfitrião, leva a comida fria e não tem assunto a não ser o projeto que estamos envolvidos. Talvez sejamos uns chatos, reconheço.
Casamentos e namoros são esforços inimagináveis, as despedidas são constantes e aprendemos a tapar o sol com a peneira. Vivemos uma vida pessoal virtual, falamos com os amigos e familiares via gravações e enviamos fotos, acompanhamos a vida de uns de perto (os nativos), e outros de longe, nossos familiares e amigos. Fazemos coleções de imagens recebidas para nos aquecer e nos seguramos na crença que tudo fará sentido um dia porque o investimento é de tal ordem que se houver dúvida poderemos desmoronar.
Somos aquele equilibrista com vários pratinhos rodando ao mesmo tempo, cobranças fazem o pratinho girar com mais velocidade e ali estamos na corda bamba como o trapezista do Circe du Soleil. A diferença é que depois que a música acaba os pratinhos caem no chão, o artista recebe os aplausos e sai de cena. Inveja do trapezista, meus pratos nunca param de rodar.
Sim, vivemos o paradoxo da culpa e da realização. Nos cobramos e somos culpados cotidianamente, pelos outros e por nós mesmos. Alguns esforços são feitos, buscam compreensão, mas passado um tempo se cansam e lá vem as cobranças de como poderíamos ser melhores. Tenho consciência de que somos amados e nos querem por perto, eu entendo…mas vou revelar que a recíproca é verdadeira, mas há uma orientação interna que nos move a ponto de colocar nossa própria vontade a mercê do nosso chamado. Nada é mais importante e apaixonante do que exercitar um chamado.
Imagine-se dormindo em um chão duro de terra batida, o café ralo, falta água quente para se banhar, a comida nem sempre é do seu agrado e ao pensar na sensação de estar em casa vem a cabeça uma memória bem remota a sua mente. Imagine-se ficar tanto tempo longe do seu cônjuge que ao ser recebida por ele no aeroporto o abraço parece ser dado a um estranho? Imagine-se não ser reconhecido por certos familiares que envelheceram, ou nasceram durante seus anos de formação?
Para amenizar esse vazio você precisa cria (sem pensar muito) o seu núcleo “familiar” a cada aventura antropológica e se apegar a estranhos, e cria vínculos de confiança instantaneamente para diminuir a invisibilidade e ter um pouco de sensação de pertencimento identitário. Apostamos em interações que não temos qualquer controle e dependemos da boa vontade de alunos que têm interesse no seu conhecimento, mas estes sim, possuem vida social própria e querem mesmo um pedacinho daquilo tudo que você conquistou a um preço tão alto. A caminhada é longa, nem tão fácil, nem tão doce, porém, extremamente fantástica.
Quantos profissionais buscam diversão dentro destes contextos inóspitos, porque se não fosse assim, simplesmente sucumbiriam?
Não é uma simples opção. Não é pra todo mundo. A conquista não tem sabor açucarada. Reconhecimento não te aquece e prestígio não paga as contas no final do mês.
Quando paro para pensar em escolhas, eu queria me satisfazer com uma vida regular, com rotina, com finais de semana para me dedicar a vida familiar prosaica, ter horário para entrar e sair da empresa, ticket alimentação e data para férias. Aliás, os meus amigos dividem-se como podem, mas, diferente de mim, se dão prazeres. Aventuram-se, viajam, tiram anos sabáticos, férias prolongadas, fazem fotos incríveis em chapadas, cachoeiras e praias. Certo ou errado investem em uma vida em que não abrem mão da diversão, e tomam como prioridade o bem-estar, o deleite e a satisfação.
Estes possivelmente nunca serão profissionais de alta performance. Há problema nisso? De jeito algum. A questão é que em nossa sociedade temos pessoas que encontram os mesmos sentimentos satisfatórios na dedicação extrema a sua vocação para o trabalho. É uma cachaça como diriam. E como todos sabem, a “danada” traz embriagues, nos permite relaxar e nos condiciona a ter um olhar turvo, normalmente aprazível.
Não há argumentos para os vocacionados, simplesmente se é. Fato. Porque enquanto muitos vivem suas rotinas prosaicas, ou viajam pela Chapada do Jalapão, haverá sempre alguém treinando para ser melhor do que você como salientou o Tande em sua palestra.
E a vida que segue, com diversas camadas baseadas em escolhas que devem fazer sentido para quem as elege.
Uns curtem, outros treinam.
No meu caso, eu treino.