Digital, IA? Esqueça. O que vale é a cultura
- Por Jacques Meir
Foi logo ali, quase ontem. Em novembro de 2022, a OpenAI lançou sua plataforma de Inteligência Artificial generativa em versão refinada: os ChatGPTs 3.5, gratuito, e 4.0, pago. Com o lançamento sobreveio a “buzzword” incessante – IA generativa – e, nesses 20 meses, o mundo virou do avesso. O resto é história.
Assim foi com a explosão da internet e, em menor escala, com a nuvem, com a mobilidade, com as redes sociais, as lojas de app, o streaming. Estamos vivendo uma era de aceleração tecnológica incremental sem precedentes. Uma tecnologia chega, abre possibilidades, que são exploradas, e gera novas tecnologias derivadas em um looping vertiginoso.
As pessoas adotam essas tecnologias como podem – intuitivamente, na maioria das vezes. Pegam dicas com amigos, consultam a internet, aprendem alguma coisa no trabalho, experimentam. A curva de aprendizado é desconcertante, traz mais informações para quem desenvolve a tecnologia e desconcerta empresas que correm para se adaptar às novidades. Isso quando correm, porque sempre há aquelas que parecem alheias, vivem em outro ritmo, olhando para o dia a dia e nunca para fora.
De todo modo, no jogo competitivo, ser up to date em tecnologia é imperativo. Somente nas áreas relacionadas a atendimento e experiência do cliente, o estudo do Prêmio Consumidor Moderno mapeia 36 tecnologias, e cada empresa calibra o seu próprio legado de aplicações, integrações, dados e infraestrutura. O resultado tem sempre um quê de Frankenstein. Qualquer executivo que olhe para a lista de tecnologias existentes no interior do negócio fica desnorteado diante de tamanha variedade.
Extrair rendimento e produtividade de tantas tecnologias conjugadas, sobrepostas, alinhadas ou desconexas é um desafio existencial. A curva de aprendizado de uma empresa difere vigorosamente daquela registrada por uma pessoa comum, porque empresas têm métodos, prazos, objetivos e um emaranhado de interesses conjugados que nem sempre convergem para o mesmo ponto.
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É fato que existem assimetrias e lacunas de capacitação, e falta habilidade na adoção de tecnologias por empresas. Elas são sistemas que se acostumam a fazer as coisas de um jeito e que apresentam choques constantes de visões e formas sobre como inovar e repensar processos. Culturas corporativas são, em parte, reflexo da visão e do exemplo da liderança e, em outra parte, uma demonstração de como as pessoas e os processos se ajustam para desempenhar atividades, combinando conhecimento tácito, experiência prévia, vieses e inseguranças. Logo, uma empresa não tem, necessariamente, uma cultura homogênea – poucas são assim –, mas sim culturas diversas tentando ganhar espaço e representatividade.
Essa disputa surda não se resolve por voluntarismo. Por isso, “transformação digital”, “omnicanalidade”, “Inteligência Artificial” são, antes de tecnologias estruturantes, produtivas e de alto potencial inovador, processos culturais em tensão permanente. Há aquelas culturas que fazem prevalecer o apego às formas tradicionais de operação e organização de processo e aquelas que fazem prevalecer a adoção de novas maneiras de se fazer as coisas. Tomando emprestada a frase (e a contundência) do amigo Michel Alcoforado, antropólogo de raro talento e perspicácia, “é tudo culpa da cultura”.
Se uma empresa abraça a Inteligência Artificial generativa e a incorpora ao seu jeito de fazer o que faz, o embate cultural interno foi favorável a essa adoção. Se uma empresa realmente define experiência do cliente como ativo indissociável do negócio, é porque a cultura orientada ao cliente prevaleceu. Se uma empresa adota uma visão de jornada do cliente que não se limite a fluxos, mas à análise de dados, é porque ela tem apóstolos de uma cultura data-driven, e assim por diante. Quando as disputas culturais são parelhas, a empresa normalmente hesita e é pouco atuante, com limitada capacidade de decisão, em estado permanente de anestesia paralisante.
O desafio imenso de qualquer liderança realmente interessada em fazer sua empresa assegurar resultados no jogo rouba-monte, vivido em um mercado de renda média como o nosso, está em olhar fundo e compreender a extensão dos embates culturais no interior da organização. Por que a empresa faz o que faz? Por que faz como faz? Até onde está disposta a fazer diferente e a correr os riscos da mudança?
O caminho para tornar uma empresa mais sensível à mudança e à adoção racional e eficaz de tecnologias passa por uma imersão no caldo cultural que está submerso na cultura “oficial”. Hackear a cultura, para desbloquear as limitações que impedem não só a inovação, mas a coragem para mudar, é um processo necessário, doloroso, vital, para retirar empresas da inércia. Esqueça a ideia de “ser digital”. Aposte firme em entender o quanto a cultura interna, os hábitos, os vieses, as práticas e as atitudes estão aptas a abraçar o digital e qualquer outra ideia, estratégia ou tecnologia.
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