Há cerca de um ano, quando a pandemia do novo coronavírus iniciava sua jornada global, um filme coreano surpreendia plateias dos 5 continentes. “Parasita”, do diretor Bong Joon-ho, foi um fenômeno ao mostrar uma família pobre da Coreia do Sul que se “instala” paulatinamente no interior de uma casa de elite e faz brotar terrores, conflitos e tensões escondidas há tempos. A metáfora da casa purulando enquanto serve de cenário para uma convivência impossível entre classes apartadas por renda e mentalidade excludente, é também comentário de uma sociedade que prefere tornar invisíveis suas próprias contradições.
“Parasita” também é um exemplo da tendência corrente de “lobalização”, a valorização de comportamentos e comunidades locais, distantes do mainstream cultural (não apenas dele) que projetam sua voz para além de sua região. O filme sul-coreano ganhou o mundo e o Oscar de melhor filme e diretor em 2020.
Este ano, um filme que bebe na mesma fonte, com tom mais cáustico, ácido e desconfortável foi lançado na Netflix: “O Tigre Branco”, produção indiana, do diretor Ramin Baharani. O cinema indiano está longe de ser conhecido por aqui, ainda que Bollywood (nome dado à indústria de cinema local, combinando Bombaim e Hollywood) seja famosa pela sua grande produção cinematográfica, sucesso local. Plataformas como a Netflix podem ser contestadas pela influência que seus algoritmos exercem em nossa liberdade de escolha, porém, é inegável que colaboram para popularizar produções dos países mais desconhecidos e que acabam ganhando enorme visibilidade global.
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Fauda, produção israelense focada no conflito entre judeus e palestinos, é um exemplo. Dark, série alemã sobre buracos de minhoca, loppings temporais e física avançada, é outro. Tigre Branco investe na história de Balram Halwai, um jovem inteligente, que na tenra infância parecia ter uma chance de superar a miséria incontornável que o cercava, e que logo vê sua perspectiva reduzida a trabalhar duro para colaborar com o sustento da família. Se foi apontado como um “Tigre Branco”, um ser especial que só nasce a cada 20 anos, por um professor, Balram parece comum demais para sua família.
A realidade de Balram é suja, agreste, seca. Por um fresta, o jovem enxerga uma saída do “confinamento social” em que vive, ser motorista de um tipo de miliciano, que, por sua vez, tem laços com políticos “socialistas”. O esquema é todo conhecido da realidade brasileira: populismo, corrupção, lavagem de dinheiro e esquemas de lealdade entre as pessoas. Balram quer uma vida melhor e não medirá esforços, truques, falsidades, dissimulação, submissão e auto-humilhação para conseguir.
Na Índia, no entanto, nada é tão cartesiano. Continente rico em contrastes e absurda complexidade, a relação entre as pessoas é rude, violenta, cínica e agressiva. Toda a jornada de Balram – uma metáfora nada sutil para mostrar sua trajetória rumo ao inferno e à uma redenção nem tão edificante – é baseada em sua atividade como motorista. Quanto mais Balram se afasta de sua criação, mais se aproxima da corrupção da alma. Em sua submissão calculada, Balram ganha a simpatia do filho do miliciano, supostamente mais esclarecido, menos ortodoxo no relacionamento com os empregados (serviçais?), ortodoxia entendida como desprezo completo por quem é inferior (trabalhadores subalternos, vindos de regiões muito pobres).
O retrato em si não é devastador, talvez seja um comentário ressentido sobre uma Índia que tem milhões de deuses (mais de 3 milhões, para todos os gostos e causas) e pouquíssima empatia. A humanidade e o famoso equilíbrio associados à cultura indiana é corroído pela naturalidade com que a desigualdade é encarada. Não apenas uma desigualdade de oportunidades (um chavão ao gosto das esquerdas que reduz a busca pela felicidade, bem-estar material e atividades a um jogo de soma zero), mas, sobretudo, de origem. Ir para o lado da “luz” não é permitido a um indiano que tenha origem no lado da “escuridão”.
Assim como em “Parasita”, o “O Tigre Branco” faz explodir o confronto entre mundos que coexistem sempre a um passo do atrito. A violência está permeando o convívio entre pessoas diferentes que parecem se aceitar, mas simplesmente não conseguem se entender. Há um abismo expresso em olhares, gestos, frases lacônicas, silêncio, subserviência, que se torna maior a cada decisão.
É curioso ver como o cinema expressa essa sensação de deslocamento, de “despertencimento” das pessoas em relação à sociedade, à comunidade. Vimos isso em “Coringa” de Todd Phillips, em “Parasita”, também em “Uma Noite em Miami” (de Regina King). Um sentimento de sufoco permanente, de ansiedade e de falta. Enquanto Balram dirige, a Índia que vemos é um simulacro de um mundo fraturado, no qual o privilégio é uma espécie de direito divino para alguns escolhidos. Uma leitura fácil de transpor para a realidade brasileira, onde há cidadãos e cidadãos – os primeiros, submetidos às leis e à burocracia; os segundos, que conseguem viver com as leis submetidas à sua vontade. A diferença é que, por aqui, tudo é velado, ao pé do ouvido, à boca pequena, enquanto na Índia, a partir da lente Ramin Bahrani, é escancarado, virulento e ofensivo.
A pergunta que fica após vermos a trajetória de Balram Halwai, é: por que precisamos de “tigres brancos”? Qual a necessidade de acreditarmos na existência de pessoas especiais ou de defenderemos direitos adquiridos que claramente são incompatíveis com o regramento social mais básico? Enfim, quem são os verdadeiros tigres brancos: aqueles que podem romper com uma vida sofrida predeterminada pelo “destino”, que oprime o livre-arbítrio ou aqueles que vivem sob a proteção de privilégios “incontestáveis e imutáveis”?
Viver em meio a esses extremos pode ser muito perigoso.
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