De que forma enxergamos nossa vida? Como vemos as pessoas que estão à nossa volta? Em um mundo onde narrativas são construídas diariamente para iludir quem convive conosco, ser autêntico é uma atitude descartável? Até que ponto nosso comportamento indiferente, desconectado da emoção alheia, pode alimentar um caldeirão de ressentimento a ponto de explodir em violência insensata?
Uma família tentando sobreviver no rodapé da sociedade ultramoderna, hiper-competitiva e implacavelmente estratificada da Coreia do Sul é o eixo de um fascinante comentário sobre o achatamento de expectativas e perspectivas das classes médias globais. São 4 pessoas com habilidades diferentes vivendo na periferia, cada qual remoendo sua sensação de deslocamento e inferioridade diante de outros cidadãos que se mantém altivos em uma realidade repleta de transformações.
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Essas e muitas outras questões são enfocadas com raro brilho e extraordinária qualidade narrativa no fenomenal Parasita, filme sul-coreano que conseguiu a façanha histórica de conquistar o #Oscar de Melhor Filme Internacional e de Melhor Filme simultaneamente (além de direção e roteiro original).
A obra do incrível Bong Joon Ho é praticamente um tratado sobre o mal-estar reinante entre os “deserdados da globalização e da digitalização”, gente presente na maior parte dos países e que combina um sentimento de perda, ausência de objetivo, resignação forçada, dissonância cognitiva e desumanização inconsciente em uma visão de mundo cínica e niilista que despreza a política convencional
O enredo do filme é de uma simplicidade franciscana – a família humilde descrita acima, que vive dos restos de uma economia forte e próspera, consegue brecha para conviver e usufruir do padrão de vida de outra família, essa afortunada.
A família “pobre” joga um tanto sujo para conquistar seu lugar junto à família rica. Essa convivência gera inicialmente um processo de mutualismo, ambas as famílias se beneficiam do que têm a oferecer uma para a outra, mas a partir daí fica nítido que a convergência entre os dois mundos é inviável e as diferenças culturais, sociais e econômicas entre esses mundos vão provocar tensões inesperadas e ações descompensadas.
O que parecia conveniente torna-se vertiginosamente um processo de parasitismo com direito a uma boa dose Kafka. A família pobre se aproveita das benesses da família rica sem remorso e sem medida.
É possível acreditar que a família pobre aceite de bom grado seu papel de parasita, ainda que a contraparte rica não se dê conta de que está sendo usurpada. Em uma brilhante inversão de perspectiva, Bong Joon Ho mostra que os ricos enxergam seus funcionários da família pobre como “iguais”, mas apenas sob determinadas condições e explicitando o que os torna diferentes.
Claro, toda organização social tem os seus podres enterrados no porão de sua alma. Podres que afloram sem controle, sem aviso e que invadem nossa consciência tomando de assalto nossa tranquilidade.
Aqueles que convivem conosco podem muito bem estar rastejando e se esgueirando pela nossa vida sem que queiramos perceber. Quase que deliberadamente, “Parasita” mostra como a desumanização derivada da indiferença pelo outro pode levar pessoas a viverem como baratas, sem remorso e sem dor.
Nesse sentido, o filme dialoga com o Coringa de Todd Philips (falamos depois por aqui, vem ler), construindo personagens que são derrotados e perturbados, mas que ao assumirem uma persona diferente do que são realmente, uma projeção que se evidencia e chama a atenção, fazem da violência um grito de liberdade da existência insuportável.
Parasita faz da busca por uma identidade socialmente relevante uma jornada inconclusiva, onde “estar” é sempre efêmero e em desacordo com o “ser”. Simplesmente “estar” bem é mais importante do que “ser” bom. Todos assumem papeis, em ambas as famílias, todos, país e filhos se desidratam do que os definem como pessoas, cedendo espaço para ilusões de autoengano desenfreadas. O resultado desse jogo entre rótulos, identidades, pertencimento e deslocamento é pura insanidade, violência crua e uma acomodação inquietante e nervosa ao final.
Assim como Coringa, o filme vencedor do Oscar 2020 é um comentário necessário sobre como sociedades fracassam ao se deixarem levar pela imagem, pela aparência e pela incapacidade de tomarem decisões, terceirizando-as para algoritmos ou “indicações”. Descobrir e encarar os parasitas que habitam nossas vidas e pensamentos, bem como assumir o que somos e o que podemos ser são desafios formidáveis dessa modernidade incompreensível.
Viver hoje em dia parece ser um processo que quer nos arrancar dos valores e referências que gerações anteriores cultivaram. Essa ausência de âncoras que permitem a construção das identidades pessoais está na raiz da eclosão de crises de ansiedade e de violência incompreensível.
A suposta ficção de Parasita na verdade escancara nossa incapacidade de criar pontes entre manifestações distintas da natureza humana. Os parasitas que mexem com nossa mente, no entanto, estão soltos e ativos.