O início de uma nova década pode ser um momento interessante para que as empresas façam um exercício retrospectivo do que aconteceu nos últimos dez anos, a fim de ajudar no planejamento dos próximos dez. Durante a última década, a tecnologia jogou um papel fundamental, facilitando mudanças de atitude, pensar, viver, consumir, comunicar, etc. E cada vez será mais exponencial as mudanças tecnológicas nos próximos anos.
Um fenómeno possibilitado pelo avanço tecnológico é o conhecido por servicificação. A transformação (ou nova leitura), de produtos em serviços está democratizando o acesso a soluções, contratadas segundo a conveniência de cada um. Como consequência, acompanhamos nos últimos anos a forte irrupção de modelos de assinatura, que responde a necessidades sem a obrigação da sua posse, como as plataformas de streaming, como Netflix, Prime Video, HBO ou Spotify. Para oferecer uma mensuração, a economia de recorrência (ou de assinatura) cresceu mais de 300% nos últimos sete anos, segundo a Bloomberg. E, parece ser que essa nova forma de consumidor ou vender veio para ficar.
Gartner estima que em 2023, três em cada quatro empresas, das que vendem diretamente aos consumidores, oferecerão seus serviços por assinatura. A Whirlpool, dona das marcas Brastemp e Cônsul é um bom exemplo. Em entrevista para a Exame, o presidente da empresa para América Latina, João Carlos Brega, afirma: “A gente não vende geladeira, a gente ajuda a preservar a comida.” Do mesmo modo, segundo ele, “a empresa não vende fogão, ajuda a preparar alimentos.” Outros setores também estão seguindo esta linha, como o da moda, alimentação, bebidas, música e assistentes virtuais, para citar alguns.
Um dos efeitos colaterais de oferecer um aluguel, ao invés de vender um produto, é o acesso maior aos dados de cada um, e a possibilidade de personalizar cada vez mais a experiência. A personalização preditiva, no entanto, pode ter o efeito contrário, o de perseguir as pessoas para vender, ao invés de conquistá-las pelo valor que o serviço oferece.
O consumo de conteúdo vem mudando a forma como vemos enxergamos a publicidade. Na última edição do Media Scope, que realizamos em 2019, na Espanha, identificamos que não estamos na era da não-publicidade, mas na era da não-interrupção. Ao ter acesso a conteúdo sob demanda (via plataformas de streaming), as pessoas já não se acostumam mais ao modelo de interrupção constante da narrativa. Essa é uma oportunidade para refletir sobre uma nova forma de anunciar, usando a predição a favor para uma comunicação mais pertinente à pessoa, no momento correto (tempo), no lugar adequado (device), e de uma forma relevante, portanto, sem ser intrusivo. Dessa forma, construir marca volta a ser, se alguma vez deixou de sê-lo, a de priorizar um vínculo emocional orientado a criar relação, ao invés de empurrar uma promoção irrelevante, insistente e inadequada.
E isso nos leva diretamente à importância, cada vez maior da criatividade, e do marketing experiencial, de construir relações, de envolver e convidar a fazer parte. Saímos da era do Storytelling (o discurso unilateral da marca falando de si mesmo), saltamos para o Storydoing (a marca deve mostrar o que faz, mais do que falar somente), para chegar o Storyliving (a participação ativa do espectador ao consumir o conteúdo).
Neste sentido, a capacidade de combinar diferentes dados, associada com a criatividade para saber o que fazer com eles, será fundamental. Uma oportunidade pode estar na associação entre ver uma série e pedir uma pizza, por exemplo. Quanto mais todos tenhamos acesso às mesmas informações, mais dependeremos da criatividade para definir um caminho que ninguém mais esteja vendo e, portanto, gere diferenciação.
O excesso de oferta força a necessidade de oferecer diferenciação durante a jornada de relação com o serviço ou marca. E o motivo é que, diante de todo esse cenário, a definição de lealdade mudou. Na edição de 2019 do Festival Cannes Lions de criatividade, um dado chamou a atenção: 86% dos consumidores estão abertos a mudar de marcas quando fazem compras. Vivemos em um mundo repleto de ofertas ao nosso redor, mas com muito poucas que realmente nos chamam a atenção por oferecerem relevância e benefício concretos.
E é preciso de dizer que a percepção de relevância pode vir de carona com as recomendações dadas pelos algoritmos. É preciso reconhecer que as máquinas oferecem uma maior capacidade de processamento (rapidez) e uma melhor capacidade de análise de uma infinidade de combinatórias, para o nosso processo de decisão. Geralmente confiamos mais no caminho indicado pelo Waze do que o pensado pelo taxista. Se 86% dos consumidores tendem a não ser leais a uma marca, a fidelidade é inversa quando diante de algoritmos. 85% das pessoas que compram online confiam nas recomendações da Alexa.
Um aliado que veio para ficar é o comando de voz. Estima-se que o número de assistentes de voz triplicará até 2023, segundo a Juniper Research, chegando a oito bilhões de dispositivos em todo o mundo. Com a busca por soluções sendo feita por voz, além do SEO (Search Engine Optimization), as empresas terão que desenvolver estratégias específicas pensadas para o VSO (Voice Engine Optimization). As nossas escolhas se tornarão cada vez mais fáceis, fluidas e rápidas. E, ao invés de serem predeterminadas por preferências de marca, confiaremos nas avaliações de outras pessoas para a melhor solução recomendada. Neste canal, as marcas terão que lidar com uma publicidade mais limitada, tendo que ser mais personalizada e pertinente, criando relações em tempo real e interativas com as pessoas (Storyliving), durante o uso do dispositivo de voz.
Há alguns anos, a tecnologia vem colocando as pessoas como protagonistas, com poder para pressionar as marcas a saírem de uma postura autocentrada, para uma abordagem que ofereça valor para as pessoas. Espera-se que as marcas se posicionem de uma forma mais ativa do que passiva diante dos problemas que nos cercam. Por exemplo, mais do que simplesmente investir em ações de responsabilidade social corporativa, elas devem praticar o que defendem. Segundo a pesquisa da Accenture, “quase dois terços dos consumidores em todo o mundo (63%) preferem comprar serviços de empresas que apoiam um propósito comum, refletindo seus valores e crenças pessoais.” É a importância de fazer mais do que falar (Storydoing). É a crescente importância da consciência empresarial, como consequência de consumidores mais informados, conectados e mais conscientes do seu papel dentro de uma (desejada) economia circular.
Diante de tudo isso, há desafios de sobra para as marcas. E eles não são menores para as agências. Segundo a AdAge, “72% das agências digitais em todo o mundo dizem que ‘ciência e análise de dados’ são as habilidades técnicas mais necessárias em dois anos.” Mas não precisamos pensar em dois anos, a aparição de novos perfis profissionais já vem acontecendo. Toda a cadeia do marketing vem mudando rapidamente porque, como vimos, a forma em que os consumidores compram e se relacionam com as marcas é completamente diferente hoje do que era no passado. E o será mais ainda no futuro, influenciada pela evolução exponencial da tecnologia.
Como conclusão, gostaria de destacar quatro pontos-chave. Primeiramente, a importância da criatividade, que crescerá como um valor diferencial dentro da comoditização da informação e do acesso aos dados. O que fazer com eles, como interpretá-los e dar significado criativo será crucial para oferecer mais autenticidade às marcas.
Depois, claramente estamos diante de um momento de transição, do qual já saem na frente aquelas marcas que adotam uma motivação sociocentrada, ao invés da autocentrada. As marcas deverão dejxar de priorizar vendas e preços, e focar em identificar as necessidades reais do consumidor, para responder com soluções relevantes e pertinentes.
A Amazon talvez tenha sido a primeira em praticá-la, ao renunciar ao lucro imediato, para investir durante os últimos vinte anos em logística e tecnologia, consistentemente, e torná-la a gigante que é hoje. O objetivo por trás dessa atitude sempre esteve focado no consumidor, para atender a sua necessidade por entregas cada vez mais rápidas e com preços mais competitivos. Esse exemplo também demonstra que o longo prazo deve ter o seu espaço, em paralelo ao curto prazo.
E, finalmente, as marcas deverão investir na sua atualização de dentro para fora. Para isso, devem mapear sua própria obsolescência, buscando cobrir suas deficiências com novos talentos e novos perfis profissionais, que ofereçam as novas capacidades demandas hoje, e sinalizam o que será exigido nos próximos dez anos.
*Por Graziela Di Giorgi, CGO e diretora Brasil da SCOPEN.
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