Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou aos brasileiros que, para lidar com a inflação, a solução seria parar de consumir produtos caros. No entanto, em resposta a essa sugestão, consumidores questionaram: “o que realmente está barato?”. Além disso, há quem critique a ideia, afirmando que ela “veio tarde”, pois já faz tempo que muitos são forçados, pela falta de recursos, a reduzir seu consumo.
Isso se deve, primeiramente, ao dilema causado pela inflação, cujas previsões dos analistas econômicos apontam para 4,6% em 2025, levando muitos a reconsiderar seus hábitos de compra. Contudo, existem dois problemas nessa abordagem. O primeiro é: será que, do ponto de vista econômico-financeiro, abrir mão do consumo é realmente a solução?
O segundo problema está relacionado ao impacto que essa redução do consumo pode ter sobre a economia como um todo. Se os consumidores diminuem suas compras, as empresas enfrentam uma queda nas vendas, o que pode resultar em demissões e uma redução ainda maior da capacidade de consumo. Essa cadeia de eventos pode criar um ciclo vicioso difícil de romper, onde a diminuição do consumo leva à estagnação econômica.
Normalização da privação
A normalização da privação refere-se ao processo pelo qual comportamentos ou situações que, em um contexto normal, seriam considerados inaplicáveis ou prejudiciais, passando a ser aceitos ou justificados dentro de um determinado grupo social. Esse fenômeno pode ser observado, por exemplo, na saúde mental, onde a normalização da privação pode se manifestar quando comportamentos autodestrutivos ou vícios se tornam aceitos em uma comunidade em vez de serem reconhecidos como problemas que precisam de atenção e tratamento. Por consequência, a normalização da privação dificulta a recuperação e perpetua o sofrimento dos indivíduos envolvidos.
Outro exemplo ocorre em ambientes de trabalho onde a sobrecarga de estresse e a exaustão são comuns. Por conta disso, a equipe começa a considerar tais condições como normais. Com o tempo, isso pode levar a uma aceitação de práticas prejudiciais à saúde mental e física dos indivíduos, desestimulando a busca por melhorias nas condições de trabalho e gerando um ciclo vicioso de estresse e baixa produtividade.
O conceito de normalização
Quem explica melhor o conceito de normalização é o filósofo Michel Foucault (1926-1984), especialmente na obra “Vigiar e Punir“. De acordo com Foucault, a normalização envolve a criação de uma norma idealizada de comportamento. Só para exemplificar, a forma como se espera que um soldado se porte, marche, apresente armas, entre outros, todos definidos em detalhes minuciosos. E a posterior recompensa ou punição dos indivíduos que se conformam ou desviam desse ideal, respectivamente. Segundo Foucault, a normalização é uma das várias estratégias utilizadas para exercer controle social com o mínimo de força, o que ele descreve como “poder disciplinar”.
Este poder começou a ganhar destaque no século XIX, sendo amplamente aplicado em hospitais, asilos, escolas, fábricas, escritórios e assim por diante, tornando-se um elemento essencial da estrutura social nas sociedades modernas.
Parar de consumir
No consumo, parar de consumir, definitivamente, não é a saída. A privação alimentar, por exemplo, pode tornar-se uma experiência angustiante, contribuindo para distúrbios alimentares e outros tipos de transtornos. O impacto econômico também não deve ser subestimado, já que a ênfase excessiva no consumo pode levar a um endividamento significativo, afetando a qualidade de vida e o bem-estar financeiro das pessoas.
E a bola de neve continua. Na esfera social, a aceitação da privação como um estado comum pode reforçar desigualdades e exclusões sociais, criando divisões entre aqueles que têm acesso a bens e recursos e aqueles que não têm. Na filosofia, encontramos Zygmunt Bauman, que diz que as relações sociais são baseadas no consumo; e Karl Marx (1918-1883), que aponta que mercadoria é um objeto externo, uma coisa que, por suas qualidades, atende às necessidades humanas, seja qual for a natureza e a origem delas. Não importa de que maneira atende à necessidade humana, como meio de sustento, como objeto de consumo, ou, indiretamente meio de produção.
Oferta e demanda
O especialista em finanças Rodolfo Olivo, professor da FIA Business School, explica que descontinuar o consumo não é uma alternativa viável para combater a inflação. “O aumento dos preços na economia resulta da interação entre oferta e demanda de bens e serviços. O consumo, a curto prazo, impacta apenas a demanda, sem alterar a oferta”, explica ele, salientando que, muitas vezes, as causas centrais da inflação estão relacionadas a choques de oferta, como a quebra de safras, inundações ou estiagens, agravadas por questões climáticas, além da valorização do dólar, que encarece produtos importados. Nenhuma dessas causas está diretamente ligada ao consumo.
“Mesmo quanto à demanda, não é possível simplesmente interromper o consumo de todos os produtos; o máximo que se pode fazer é substituir um item por outro. Trocar um produto mais caro por um mais acessível pode parecer sensato em termos individuais, mas se isso ocorrer em larga escala, o efeito tende a ser compensatório: o produto deixado de lado pode ver seu preço cair, enquanto o novo escolhido, ao ter a demanda aumentada, pode ter seu preço elevado, resultando em um impacto limitado na inflação. Só para exemplificar, ao trocar a compra de laranjas por bananas, o preço das laranjas pode até baixar, mas o preço das bananas provavelmente subirá, o que de certo modo anula o efeito em termos de inflação”, afirma Rodolfo.
Reduzir preços, é possível?
Paulo Ramirez, professor de ciências políticas da ESPM, destaca que o Executivo Nacional tem a prerrogativa de buscar alternativas para reduzir os preços. Há duas semanas, ocorreram negociações com o setor de supermercados, que incluíram uma revisão da cobrança de impostos sobre o vale-refeição e vale-alimentação. “Entretanto, existem outras causas que contribuem para a inflação, como a desvalorização do real, que torna mais vantajoso para os produtores do agronegócio no Brasil exportarem suas mercadorias. Isso gera um problema de abastecimento interno e a diminuição da produção destinada ao mercado brasileiro resulta em escassez de produtos, o que, por sua vez, eleva os preços para o consumidor brasileiro”.
Por outro lado, qualquer tentativa de intervenção do governo federal nesse contexto pode ser interpretada como um “desestímulo à produção”, conforme suas palavras. “Nesse sentido, o governo pode estar certo, por mais surpreendente que isso pareça, porque regular o setor produtivo pode resultar em consequências negativas. De um lado, há o Executivo que busca erradicar a fome, e do outro, não existe uma política eficaz para o controle de preços. Mesmo que tentasse, isso prejudicaria significativamente as vendas internas, transformando a situação em um labirinto sem saída”.
Outro aspecto relevante, segundo ele, foram as chuvas do ano passado, que afetaram negativamente o setor agrícola. “Como consolo, restou ao Lula orientar os brasileiros a moderar o consumo, o que soa contraditório, uma vez que a população precisa se alimentar para garantir um mínimo de qualidade de vida”.
Como a Selic afeta o consumo?
Maurício Takahashi é docente de Finanças, Economia e Métodos Quantitativos do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus Alphaville. Ele compara o Comitê de Política Monetária (Copom) a um motorista na condução da economia brasileira. Ou seja, embora não controle o motor, sua função é acelerar, frear e ajustar a direção para garantir que o país permaneça no caminho adequado.
“Quando a inflação começa a subir rapidamente, como um carro descendo uma ladeira em alta velocidade, o Copom atua aplicando uma freada, aumentando a taxa de juros. Em 29 de janeiro de 2025, o Copom elevou a Selic para 13,25% ao ano. O intuito é tornar o crédito mais caro e menos acessível, o que ajuda a reduzir o consumo e controlar a inflação“, explica o especialista.
Contudo, tal freada abrupta pode resultar em uma desaceleração da economia e dificuldades em alguns setores. “Ao tomar um empréstimo, você está essencialmente antecipando recursos do futuro para utilizar no presente. Com o aumento dos juros, o custo desses recursos também se eleva. Isso implica que, para novas aquisições, como financiar um carro, adquirir uma casa ou parcelar compras, os custos se tornaram mais altos”.
Os impactos para as empresas
Essa situação, consoante Maurício Takahashi, também impacta os empreendedores que buscam novos créditos para ampliar seus negócios. Para aqueles que já possuem empréstimos, não há mudanças, desde que esses compromissos não sejam atrelados a índices de correção. Com menos pessoas e empresas contraindo dívidas, a tendência é que o consumo diminua mesmo. “O resultado será uma possível desaceleração econômica”.
A redução do consumo de itens considerados supérfluos ou caros pode, de fato, ajudar a mitigar os efeitos inflacionários de curto prazo. Contudo, é crucial que essa estratégia não se transforme em uma normalização da privação.
O governo, em sua função de regulador e promotor de políticas públicas, precisa trabalhar em conjunto com o setor privado para garantir que haja uma ampla gama de opções acessíveis e de qualidade para os consumidores.
Juros elevados
Dados do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) mostram que a dívida bruta do Brasil já ultrapassa 84%. Contudo, o que realmente se destaca a partir da última reunião do G20 – fórum de cooperação econômica que reúne líderes de 19 países, a União Europeia e a União Africana, representando cerca de 85% do PIB global – não é apenas o montante da dívida, mas sim o que se gasta com ela. Quem melhor explica é Emanuel Pessoa, advogado especializado em Direito Empresarial, e professor na China Foreign Affairs University.
“O Brasil se sobressai globalmente pelo elevado custo desse endividamento. Para compreender a gravidade da questão, é necessário observar os números de forma ampla. Enquanto países desenvolvidos pagam, em média, 2% de juros sobre suas dívidas, aqui no Brasil este valor já ultrapassa 7%. Em termos absolutos, isso resultou em um gasto de R$ 816 bilhões em 2023 – uma quantia que poderia ser investida em desenvolvimento”.
Círculo vicioso
Ele afirma que esse quadro é fruto de um ciclo histórico complicado e autossustentável. Ou seja, o governo utiliza juros elevados para conter a inflação, mas, ao mesmo tempo, amplia a dívida pública. “Com o aumento do endividamento gerado pela expansão dos gastos públicos e pelo crescimento do custo do serviço da dívida, o governo se vê forçado a contrair novas dívidas para se manter operante, o que eleva os juros. Essa elevação prejudica a atividade econômica, afetando a arrecadação e aumentando a demanda por empréstimos, levando a um crescimento ainda maior na dívida. Trata-se de um ciclo vicioso que perdura por décadas”, informa Emanuel Pessoa.
Em suma, isso significa que cada cidadão dedica quase um mês inteiro de trabalho por ano apenas para saldar os juros da dívida pública. “Resolver este problema requer uma combinação de medidas estruturais. Isso inclui um controle rigoroso dos gastos públicos para gerar superávits consistentes, a implementação efetiva da reforma tributária para simplificar e otimizar a arrecadação, além da criação de um ambiente de estabilidade política que diminua o risco percebido pelos investidores internacionais”, finaliza Emanuel.