O que seu filho assiste ou joga na tela pode moldar — ou até comprometer — o desenvolvimento mental dele, alerta o neurologista infantil Marcelo Masruha. “Se você alimentar o cérebro com lixo, ele vai virar uma lixeira.” A advertência é direta, mas necessária, segundo o especialista, que acaba de lançar o livro “Salve seus filhos: como as telas estão lesando cérebros de crianças e adolescentes e os 7 passos para livrá-los do vício digital”.
O especialista acompanha de perto as consequências do uso indiscriminado de telas no desenvolvimento neurológico de crianças e adolescentes. Ele destaca evidências de alterações na substância branca e no córtex cerebral em jovens expostos a longas jornadas digitais.
Um dos pontos mais preocupantes, segundo o neurologista, é a reversão do chamado Efeito Flynn, fenômeno observado durante décadas em que o quociente de inteligência (QI) das novas gerações superava o das anteriores. “Hoje, vemos o oposto. A geração pós-anos 2000, nativa digital, está apresentando uma queda de desempenho cognitivo. E isso está diretamente ligado ao tipo de conteúdo que essas crianças e adolescentes estão consumindo, não apenas ao tempo de uso dos dispositivos.”
Para Masruha, o conteúdo online consumido também molda o cérebro e precisa ser supervisionado pelos pais, pois há riscos reais. Os danos causados podem, inclusive, comprometer o futuro profissional dessas crianças e adolescentes.
A seguir, conversamos um pouco mais com Masruha sobre esse fenômeno.
Consumidor Moderno: Quais são os principais efeitos do uso excessivo de telas no desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças e adolescentes, e como isso pode impactar o futuro profissional desses jovens?
Marcelo Masruha: O uso excessivo de telas afeta diretamente áreas fundamentais do cérebro em desenvolvimento. Do ponto de vista cognitivo, há prejuízos na atenção sustentada, na memória de trabalho e no controle inibitório — funções executivas essenciais para o aprendizado e para o desempenho acadêmico e profissional no futuro. Estudos de neuroimagem já mostraram, por exemplo, redução na integridade da substância branca em crianças com alto tempo de tela, o que pode impactar a velocidade e eficiência das conexões cerebrais (Hutton et al., JAMA Pediatr, 2019).
No campo emocional, vemos maior impulsividade, irritabilidade, alterações no sono e sintomas ansiosos ou depressivos. Socialmente, o excesso de tempo online reduz o contato com interações presenciais significativas, prejudicando o desenvolvimento da empatia, da linguagem corporal e das habilidades interpessoais, competências cruciais no ambiente de trabalho e na vida.
No longo prazo, isso pode comprometer não só o desempenho escolar, mas também a capacidade de resolução de problemas, liderança e convivência, pilares da vida profissional no século XXI.
Sinais de alerta
CM: Quais sinais de alerta os pais devem observar para identificar se os filhos estão desenvolvendo dependência ou prejuízos devido ao tempo excessivo diante das telas?
Existem alguns sinais clássicos de alerta: irritabilidade intensa ou agressividade quando os dispositivos são retirados; Negligência de tarefas escolares ou atividades diárias; Perda de interesse por brincadeiras ao ar livre ou por interações sociais presenciais; Mentiras sobre o tempo de uso ou uso escondido; Alterações no sono e cansaço diurno frequente; e desempenho escolar em queda.
Outro ponto importante é observar se a criança ou adolescente está deixando de realizar atividades básicas, como se alimentar adequadamente ou manter a higiene pessoal, para permanecer em frente às telas. Quando o uso passa a interferir no funcionamento da rotina ou causa sofrimento emocional, é hora de buscar ajuda.
CM: Como lidar com a resistência das crianças e adolescentes diante da imposição de limites, especialmente em uma geração tão conectada? O que fazer quando o vício já está instalado e, sobretudo, quando os próprios pais também fazem uso excessivo das telas hoje?
Essa é uma das perguntas mais difíceis e, ao mesmo tempo, mais urgentes. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de recuperar o papel dos pais como referência e autoridade afetiva. Os limites causam desconforto no início, mas são fundamentais para o desenvolvimento da autorregulação.
Se o vício já está instalado, o primeiro passo é reconhecer o problema sem culpas ou ataques. Depois, é necessário reorganizar a rotina, oferecendo alternativas reais e envolventes: esporte, leitura, tempo livre de qualidade com a família. Em alguns casos, é importante buscar apoio de profissionais — médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais — especializados em saúde digital.
E um ponto-chave: as crianças aprendem muito mais pelo exemplo do que pelas palavras. Se os pais também estão em desequilíbrio no uso das telas, o processo de mudança começa por eles. Reduzir o tempo no celular, conversar mais olhando nos olhos, jantar sem telas, tudo isso cria um ambiente de conexão real que favorece a transformação.
Uso das telas e desenvolvimento saudável
CM: Quais estratégias práticas os pais e educadores podem adotar para equilibrar o uso das telas com atividades que promovam o desenvolvimento saudável das crianças. E ao mesmo tempo não limitem o conhecimento sobre essas ferramentas que, de certa forma, têm seu valor atualmente?
O ponto não é abolir as telas, mas dar a elas um lugar saudável na vida das crianças. Algumas estratégias práticas incluem: definir horários claros para o uso recreativo de telas, com regras consistentes e previsíveis; evitar o uso antes de dormir e ao acordar, momentos críticos para o cérebro; criar zonas livres de tela, como durante as refeições ou no quarto; incentivar atividades analógicas, como jogos de tabuleiro, leitura, esportes, música ou brincadeiras ao ar livre e fomentar a curiosidade com ferramentas tecnológicas educativas, de forma mediada e com propósito.
Pais e professores podem — e devem — ensinar pensamento crítico sobre o mundo digital, explicando como funcionam os algoritmos, os riscos das redes sociais e a importância de pausas. Educar para o uso consciente é tão importante quanto alfabetizar.
CM: Diante do avanço tecnológico irrefreável, de hábitos de consumo cada vez mais digitais e do apelo das marcas para esse universo, como podemos criar uma relação saudável com a tecnologia?
A resposta está em substituir o consumo passivo por um uso ativo, consciente e moderado da tecnologia. Isso exige formação crítica desde cedo, tanto nas famílias quanto nas escolas, e políticas públicas que reconheçam o impacto do ambiente digital na saúde mental e no desenvolvimento infantil.
É possível, sim, criar uma relação saudável com a tecnologia. Para isso, precisamos de presença parental ativa, conexão humana real, valorização do tempo offline e resgate do brincar. A tecnologia deve ser uma ferramenta a serviço da vida, não um substituto da vida.