A entretenimento sempre funcionou como uma válvula de escape tanto para situações de estresse profissional quanto para contextos emocionais complexos. Se considerarmos o valor artístico do cinema, então, teremos uma visão ainda mais ampla dos aprendizados que podemos obter através da tela. Não por acaso, enclausurados em seus lares, são muitos os consumidores que estão optando por séries e filmes em streaming para se distrair e aprender. Uma das novas opções é “O Vendedor de Sonhos”, chegou aos cinemas nacionais em 2016 e vem ganhando mais repercussão desde quando entrou no catálogo da Netflix – o que ocorreu recentemente. Em poucos dias, o filme alcançou o “top 3” entre os mais vistos no Brasil.
Dirigido por Jayme Monjardim, o longa-metragem foi inspirado no livro de mesmo nome do psiquiatra e escritor Augusto Cury. Ele traz a promessa de impactar o comportamento das pessoas e aborda questões importantes na sociedade – ainda mais diante de uma pandemia mundial – sobre a maneira como muitas pessoas agem em relação ao trabalho, metas, sonhos e convívio com a família.
Para entender o assunto, conversamos com Luciene Bandeira, psicóloga e sócia da Psicologia Viva, startup especializada em atendimento psicológico virtual, que destacou aprendizados que a produção pode oferecer.
Não viva somente para o trabalho
Uma das grandes discussões de “O Vendedor de Sonhos” é: até que ponto as pessoas deixam o trabalho tomar conta de suas vidas, esquecendo os momentos de lazer e cuidados com a saúde? Coincidentemente, o discurso se encaixa no atual momento, já que grande parte da população mundial começou a repensar suas relações humanas e seguem mais unidas com as famílias – mesmo que, em muitos casos, estejam trabalhando em casa. Luciene explica que saber dividir o tempo certo para o trabalho e os outros afazeres forma uma sociedade mais sábia.
“Vivemos em um mundo que demanda mil coisas, que estejamos sempre conectados e que estabelece padrões do que significa ser bem-sucedido. Daí, muitas vezes, direcionamos nossa atenção para o trabalho e o desempenho profissional, como se essa fosse a única base para o sucesso. Costumo usar uma metáfora que ouvi de uma professora, há alguns anos, que é bem ilustrativa disso. Imagine que a vida seja uma mesa e que cada pé dessa mesa é uma área de sua vida. Assim, um pé é sua vida afetiva, o outro sua vida familiar, o outro sua vida social e o outro seu trabalho. Sobre a mesa, está você. Para ela suportar seu peso, todos os pés precisam estar fortes. De nada adianta o pé do trabalho ser robusto como um tronco de árvore, se os demais pés da mesa forem frágeis como gravetos. Sua vida vai se desequilibrar, e você vai cair (ou seja, ter problemas)”, diz.
Por isso, ela sugere que o ideal é dar atenção equilibrada para cada um desses aspectos da vida. “Se você está precisando sacrificar sua vida afetiva, familiar ou social por causa do trabalho, é o momento de reavaliar prioridades e ressignificar aquilo que você tem valorizado”, orienta a especialista.
O dinheiro é só parte da felicidade
Um dos destaques do filme são as frases inspiradoras que geram muitas reflexões. Entre elas, está “o segredo do sucesso é conquistar aquilo que o dinheiro não pode comprar”. Neste sentido, a obra aponta que bens materiais e fortuna podem não ser a salvação de tudo e que muitos momentos de felicidade pode ser construídos com coisas simples – como receber um abraço e olhar o mundo de uma perspectiva diferente. Nos dias atuais, um exemplo é a solidariedade entre as empresas, que estão sendo empáticas e mostrando que um gesto humanitário pode valer tanto quanto os lucros.
“O personagem principal é um multimilionário que tinha tudo, mas não tinha tempo para conviver com a esposa, participar da vida da filha e desfrutar do que havia conquistado. Somente depois que ele sofre perdas irreparáveis, justamente naquelas áreas da vida para as quais não vinha dando atenção, percebe o real valor que elas tinham – coisas que o dinheiro não pode comprar, como o sorriso dos filhos, participar de momentos significativos daqueles que amamos, contemplar espetáculos que a natureza nos proporciona, poder deitar a cabeça no travesseiro com a consciência tranquila. Hoje, o conceito de sucesso está mais relacionado a encontrar propósito e satisfação naquilo que fazemos e termos tempo para nós mesmos, mais do que uma fortuna acumulada no banco”, explica Luciene.
É preciso cuidar da saúde emocional
No filme, Júlio Cesar é um profissional da área saúde mental que está com seu psicológico totalmente abalado. A ideia é mostrar que ninguém está imune, e isso não é ruim. Pelo contrário, é importante ter consciência e saber que devemos sempre cuidar de nossa saúde mental com atitudes que nos façam bem, ainda mais em época de isolamento social.
“O que eu acho mais legal nesse personagem é a desmistificação do profissional de saúde mental. Sim, ele estudou anos para ajudar as pessoas a melhorarem sua forma de lidar com a vida, sabe como a mente e as emoções funcionam e, de fato, consegue fazer a diferença na vida de muitas pessoas. Mas ele também é um ser humano, que tem problemas, dilemas e sofrimentos como qualquer outro e que pode, por vezes, também precisar de ajuda para encontrar outros caminhos e saídas para si mesmo. Ele também adoece e erra, porque é um ser humano”, afirma Luciene.
A especialista destaca que para ter uma boa saúde mental é essencial que as pessoas cuidem de fatores como estresse e ansiedade, mas, acima disso, também busquem diariamente equilíbrio, flexibilidade, autocontrole e autoconhecimento.
“Existem formas melhores de lidar com as mais variadas situações desafiadoras que a vida humana nos apresenta. Podemos aprender com todas as nossas experiências, boas e más! Não é porque eu sempre agi de uma mesma forma que essa seja a única forma ou a forma mais correta de enfrentar uma determinada situação! Também não é porque eu sinto que algo está certo que minha emoção seja adequada ou proporcional ao que está acontecendo. A saúde mental vai muito além da ausência de transtornos como ansiedade e depressão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a saúde emocional como um estado de bem-estar onde o indivíduo realiza suas próprias habilidades, lida com os fatores estressantes normais da vida, trabalha produtivamente e é capaz de contribuir para a sociedade”, expõe.
Sair da zona de conforto vale a pena
“Não tenha medo do caminho, tenha medo de não caminhar”, essa é outra frase que merece ser notada. Muitas vezes as pessoas se sentem insatisfeitas com atitudes no trabalho, ou até mesmo dentro de casa, mas falta coragem para questionar ou sugerir alterações e acabam se conformando com o assunto, mesmo sem estarem contentes. Isso não deveria acontecer. Ficar acomodado não leva ao aprendizado. Todos precisam ter seu momento de fala e espaço para expor seus pensamentos. De acordo com Luciene, sair da zona de conforto e lidar continuamente com mudanças que ocorrem, seja no âmbito familiar, social ou profissional, é uma oportunidade de crescimento.
“A mudança faz parte da vida, sempre esteve presente e sempre estará. Darwin já dizia que quem prevalece não é o mais forte nem o mais inteligente, mas o mais propenso à mudança. Viver é um constante exercício de adaptação. Adaptar-se não tem nada a ver com submeter-se, como alguns têm tentado fazer parecer. Adaptar-se é buscar formas alternativas para solucionar problemas. É ter flexibilidade para abrir mão de velhos hábitos para aprender formas novas de agir”, diz.
Como ela aponta, as mudanças são, na maior parte das vezes, oportunidades de aprendizado. E se tem algo que nos ajuda a crescer é aprender. “Quem tem abertura para a mudança aprende mais e se desenvolve mais, porque amplia seu repertório”, defende. “Podemos aprender algo novo todos os dias, basta estar aberto a isso – Mas não é fácil abrir mão de hábitos enraizados, formas confortáveis de lidar com a vida ainda que sejam disfuncionais!”.
É aí que entra o trabalho da psicologia. Mudar comportamentos, formas de entender e sentir a vida são benefícios que o acompanhamento psicológico pode trazer. Porque não vai ao psicólogo quem tem problemas. Problemas todo o mundo tem! Vai ao psicólogo quem quer resolvê-los”, afirma a especialista.
Insira uma vírgula em sua jornada
Outra frase de efeito da obra é “todo mundo merece uma segunda chance”. No filme, a vírgula simboliza a vontade de continuar com uma perspectiva diferente. Isso vale tanto para a vida pessoal como para a profissional. Quantas vezes você não quis recomeçar um trabalho ou um projeto? Há sempre uma possibilidade de colocar uma vírgula quando necessário. Segundo Luciene, a metáfora da vírgula também representa a mudança do estado de culpa ou negação para o autoconhecimento. Nos momentos em que parece ser um ponto final, ter autoconhecimento é necessário para refletir, se recuperar e seguir adiante.
“Não é porque algo deu errado ou não aconteceu como esperamos, porque falhamos, porque estamos cansados, que tudo está perdido. Muitas vezes, a pausa é um momento necessário para refletir, redirecionar, recuperar as forças para seguir adiante ou até mesmo mudar o rumo das coisas!”, diz.
Ela sugere que, diante das adversidades, podemos adotar três posturas diferentes e cada uma delas vai determinar o direcionamento que será dado.
1. Negação
Ocorre quando negamos nossa responsabilidade diante daquilo que está nos acontecendo e, nessa postura, tende-se a culpar os outros (a vida, o mundo etc) por nossos problemas e se vitimizar.
2. Culpa
Acontece quando a pessoa acredita que todos os problemas são ocasionados por ela ou por suas escolhas, partindo de uma autocrítica muito severa e impiedosa, que agrava o desconforto e dificulta a busca de alternativas. Essas duas posturas são disfuncionais e em nada ajudam no enfrentamento das adversidades.
3. Autoconhecimento
Por fim esta é a postura que ajuda a enfrentar as adversidades de forma funcional. “Com o autoconhecimento, você consegue entender o que é responsabilidade sua e o que é do outro, o que depende de você e o que não depende, você se torna mais flexível, porque sabe quais são seus limites e potencialidades e se torna mais resiliente, tirando sempre um aprendizado diante das pressões da vida”, conclui a profissional.