Eis uma verdade indiscutível: a paixão do torcedor (e da torcedora), principalmente o brasileiro, pelo seu time de futebol do coração, não tem rival ou paralelo. Podemos trocar de carreira, emprego, par, residência, cidade, mas quando temos real identidade ou paixão por um time, nada irá ocupar esse espaço. O time do coração integra, unifica, inclui e expressa até uma visão de mundo e de sentimento diante da vida. O torcedor é o cliente que toda empresa sonha ter.
Sim, o futebol é uma paixão nacional e temos desse esporte muito do que nos orgulhar. Conseguimos cinco Copas do Mundo, vários torneios sul-americanos e outros espalhados em todos os continentes. Nossos times conseguiram proezas nos gramados do mundo. São dezenas de escalações memoráveis, o Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha, o Internacional de Falcão, o Flamengo de Zico, o São Paulo da era Telê Santana, o Palmeiras da Academia e de Ademir da Guia, o Cruzeiro de Tostão. Uma galeria infindável de jogadores espetaculares que levaram o Brasil a se tornar um país sempre referencial do esporte da bola no pé.
Vivenciei a experiência do jogo em muitos gramados. Vi jogos memoráveis e outros esquecíveis, mas sempre cultivei um respeito enorme pela forma com que praticávamos o futebol. Um jogo atrevido, que alternava ritmos, ora mais cadenciado, ora vertiginoso, sempre imprevisível. A beleza do futebol está na sua capacidade de representar muito do que é a vida: aceita todos os biotipos, todos os gêneros, é treinado, mas sempre afetado pelo acaso, emocionante, irresponsável, calculado, paradoxal e sentimental, passional no mais das vezes. Ali na cancha, vemos jogadores tentando dominar o espaço e o tempo a partir do vai e vem desenfreado da bola, uma simples bola que encanta e desperta reações extasiadas, intensas e muitas vezes incontroláveis.
Nos estádios era bonito ver bandeiras, hinos, comunhão e humor. A paixão da geral, do torcedor simples que tinha no amor pelo time, em um momento no qual não havia espaço para a polarização e a discussão política medíocre que hoje ponteia nas redes sociais. Não havia algoritmos nem Big Brother, apenas a visão de cada pessoa daquilo que ocorria no campo. As proezas dos jogadores se tornaram lendas e ajudaram o futebol a ganhar o mundo como o mais popular dos esportes e o Brasil como sinônimo do jogo bonito.
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Infelizmente, fora do campo nosso futebol sempre foi uma bagunça. Pior, sempre quis importar modismos e cacoetes de outros mercados que ajudaram o esporte a se tornar um negócio monstruoso. Nada contra fazer do futebol um negócio bilionário. Ele combina emoção, técnica, tática, arte, improviso, ciência e tem nos seus astros um negócio de alto risco. Contusões, problemas pessoais, times em má fase, tudo pode encurtar uma carreira já não tão longa e que exige uma dedicação imensa. Mas infelizmente, tudo o que caracterizou o futebol brasileiro como uma experiência estética e emocional inigualável se perdeu.
Nossa seleção é um catado de burocratas a jogar um futebol sonolento e mecânico. Nossos estádios, tão espontaneamente construídos para acomodar paixões e criar comunhão entre torcedores rivais, se tornaram as frigoríficas “arenas”, onde nos grandes jogos, só uma torcida pode estar presente. As torcidas foram dominadas por aspirantes a políticos e a fanáticos quadrilheiros que gostam de brincar de clube da luta em estações de metrô e bares das grandes, médias e pequenas cidades. Os ingressos subiram em valores que afastaram o torcedor apaixonado da geral e o jogo, aquele jogo de ritmos e inteligência, de ousadia e grande técnica, deu lugar a uma correria desenfreada, laterais cobrados para as grandes áreas, chutões e nenhum improviso. O objetivo não é mais ganhar um campeonato, é superar os rivais, vencer por vencer e não exercendo uma atividade que dê prazer e que é capaz de alcançar momentos de sublime regozijo.
Não estou sendo o purista que acredita que o futebol morreu com a derrota da extraordinária Seleção Brasileira na Copa de 1982, para a também magnífica Itália (que jogaço!) por 3×2. O Barcelona de Pep Guardiola, o próprio Manchester City dirigido pelo mesmo genial treinador, o notável Liverpool de Jurgen Klopp são times encantadores. O Flamengo de Jorge Jesus e o Santos de Dorival Jr, em 2010, com Neymar resplandecendo antes de se tornar um astro do Instagram foram times que procuraram manter a chama da magia acesa. Para completar, agora resolvemos adotar um pastiche do sistema de árbitro de vídeo, o famoso VAR, que nada mais é, nos campos brasileiros e sul-americanos, que um intrometido a ampliar seu alcance por todo e qualquer lance, como na infinidade de pênaltis marcados por chutes que resvalam em trechos de mão, antebraço que agora precisam ficar colados ao corpo.
É assim: copiamos as “arenas” para dar conforto ao público e as elitizamos ao ponto de lhes tirar o brilho das pessoas comuns. Normatizamos o comportamento e o que pode ou não ser levado, mostrado e consumido nesses espaços.
Há quase tantos árbitros hoje quanto um time inteiro em campo. Tentamos utilizar táticas baseadas em presença física e quase nada em termos de domínio do espaço, da desenvoltura com a bola, da plástica e de um tantinho de improviso para quebrar linhas de marcação compactas. Fazemos os times jogarem campeonatos inúteis (os estaduais) sem capacidade para se prepararem para torneios importantes, particularmente o nacional e os continentais.
Não fazemos mais intercâmbio com times de outros países. Os times globais curiosamente não jogam globalmente, apenas dentro de suas bolhas. Incensamos o medíocre mundial de clubes – porque pode ser o único jogo entre um latino e um europeu (se o latino for competente para eliminar mexicanos, árabes ou africanos, os europeus sempre conseguem) no ano. E ainda criamos nosso modelo de VAR, que desmoraliza a beleza do jogo ao enfileirar decisões absurdas que podam a dinâmica do jogo.
Para piorar, nossos técnicos, os “professores” criaram uma reserva de mercado de má qualidade, focados em fazer seus times jogarem apenas de uma maneira – defesas troncudas e contra-ataques rapidinhos – para satisfazer jogadores que são caros e mimados por diretorias que se escudam atrás de resultados e não do negócio que o jogo é de fato. Aliás, é espantoso que para ver se o futebol se torna mais atrativo, as novas responsáveis pela transmissão tentam trazer mais câmeras, mais ângulos e mais tomadas para que o futebol ganhe uma dinâmica de game. O jogo em si tem menos valor do que a forma pela qual é exibido…
No fim, o jogo de futebol praticado no Brasil de hoje é simplesmente um pastiche, uma caricatura do que já foi, com jogadores ostentando marcas e marquinhas em todos os cantos de uniformes outrora conhecidos como “mantos sagrados”.
O futebol brasileiro vive do nome das glórias do passado. É frio, monótono, previsível e repetitivo, além de caro e distante das pessoas. De esporte das massas se tornou aborrecimento. Poderia, sim, se tornar excitante e vibrante como a NBA – que faz do basquete dos EUA um esporte espetacular no mundo inteiro. Nem de longe, temos competência e interesse para isso.
Do meu lado, continuo apaixonado pelo meu time, mas com uma tristeza infinita cada vez que o vejo jogar. Um retrato escancarado de como a famosa “pátria de chuteiras” ainda não se convenceu de que a chatice está ganhando. E por goleada.
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