Dar uma palestra é um exercício muito mais de escuta do que de fala – seja durante, antes ou depois dela acontecer. O exercício começa na preparação do que se pretende falar, colocando-se no lugar de quem vai escutar. E segue ao incorporar estas respostas na apresentação, dando oportunidade para o amadurecimento de uma narrativa de construção contínua.
Criei este artigo inspirada em algumas das questões levantadas, e que demonstram temas sensíveis e de interesse às pessoas. As perguntas foram selecionadas a partir de distintas ocasiões, com objetivo de transmitir uma sequência de conceitos com aplicações práticas no dia a dia.
Contexto:
Na palestra costumo dizer que o termo público-alvo deva ser repensado, que ele é herança da revolução industrial e sua linha de produção em série, focada em produtos.
No passado, era possível ver diferentes produtos, cada um pensado para distintos públicos-alvo. Hoje, não somente essa abordagem não é viável, como também não se encaixa em um pensamento de serviços. Quem se lembra da Nokia, por exemplo, e seus múltiplos modelos criados para encaixar no alvo de alguns dos públicos? Se comparamos com o iPhone, um só modelo para todos os tipos de pessoas, podemos perceber que na verdade o alvo não é a pessoa, mas sim suas diferentes necessidades.
Pergunta: Você diz que não devemos pensar em público-alvo. Mas então em quem vou pensar para seguir desenvolvendo novos produtos na empresa?
Resposta:
Em projetos de inovação criamos Personas, a partir das necessidades-alvo que as une. Personas são representações de grupos de pessoas, unidas por certas semelhanças e representam um conjunto de indivíduos que compartilham necessidades, motivações e desejos similares. As Personas são definidas para o projeto que estamos desenvolvendo, ou seja, não são categorias fixas, mas customizadas de acordo com as características que se quer atender, resolver.
O interessante ao estabelecer Personas, e não Público-alvo, é que você amplia o serviço (ou produto) para um grupo maior de pessoas – que possuem uma mesma necessidade (por exemplo: uma criança de 8 anos, uma mulher de 40 anos e um senhor de 80 anos podem solicitar serviços especiais em uma viagem pela necessidade-comum de mobilidade reduzida.
No pensamento tradicional, essas três pessoas estariam em grupos separados, por estereótipos-padrão e preconcebidos para cada idade). Além disso, é comum em projetos testar o serviço para Perfis-extremos, aqueles que detém uma exigência maior, e que colocam em cheque o serviço que estamos criando.
Para exemplificar, voltamos a situação de uma viagem, na qual podemos considerar como perfil-extremo uma idosa com mobilidade reduzida. Avaliaremos todo o serviço segundo a visão desta Persona, com o objetivo de fazer os ajustes necessários para que tudo funcione bem para ela.
A importância de considerar os perfis-extremos é a de se abrir a melhorias, submetendo o serviço a um ponto de vista diferente ao que estamos acostumados. É aí onde o serviço começa a se diferenciar, oferecer relevância e gerar valor. Se conseguimos fazer com que o serviço funcione bem para este perfil, resolvendo um problema que a maioria não vê (por não estar acostumada a considerar perfis distintos ao usual), provavelmente funcionará bem para o restante das pessoas que não possuem tais demandas. E provavelmente funcionará até melhor para a maioria, pelos ajustes implementados ao considerarmos uma visão mais crítica.
Em um mesmo projeto consideramos distintas e múltiplas necessidades-alvo (Personas), entrevistando e testando para cada uma, a fim de otimizar um único serviço para servir a todas.
Contexto:
A palestra tem como base o conteúdo do meu livro, no qual considero como Iguanas as empresas que não inovam. A analogia vem do fato de as Iguanas só terem a camada reptiliana no seu cérebro (diferentemente das três camadas cerebrais humanas – a saber a reptiliana, límbica e o néo-córtex). Ao carecer da emoção (camada límbica) e da razão / imaginação (néo-córtex), as Iguanas reagem por instinto de sobrevivência. São seres imediatistas (não planejam a longo prazo, porque seu instinto exige focar em viver um dia de cada vez), são autocentradas (ao não terem a empatia – que vem da camada límbica, não se importam com as outras Iguanas. Só estão interessadas em si mesmas, e em garantir sua sobrevivência), e são medrosas (não fazem nada diferente do usual para não correr algum risco que provoque sua morte).
O comportamento das Iguanas me pareceu bastante análogo ao que ouvi das empresas mais tradicionais: centradas no próprio lucro, em resultados rápidos e evitar fazer algo diferente que resulte em perda de alguma fatia do mercado (medo de errar).
Pergunta: Ao longo da sua experiência, ajudando a transformar empresas Iguanas em Humanas, qual o primeiro passo você recomenda para isso acontecer?
Resposta:
O primeiro passo é sensibilizar a liderança. Normalmente uma empresa é Iguana pela sua cultura, a partir da qual suas crenças, medos, hábitos são transmitidos. Os líderes podem começar a estimular novas práticas que apóiem uma nova abordagem, que rompa com o que estamos acostumados. E isso não é fácil porque requer, por exemplo, mudar a forma de pensar.
É preciso abrir mão do retorno imediato para investir agora em um possível ganho no futuro. Exige entender que por trás dos erros há benefícios, que são os aprendizados (normalmente aprendemos mais com os nossos erros, que com nossos acertos). Demanda se conscientizar de que não arriscar talvez signifique o maior risco de todos (em um cenário em que o seu concorrente já não é só a marca que persegue a sua posição no mercado, mas aquela startup, plataforma digital que tem dados suficientes para criar um novo negócio que vai matar o seu em poucos anos).
Nesta jornada de sensibilização é preciso transmitir o despertar para uma nova consciência, que deixe clara a necessidade de mudança para o modelo mental que a inovação exige.
Pergunta: Mas não deve ser fácil disseminar uma nova cultura. Como fazer para que essa sensibilização se transforme em inovação?
Resposta:
Normalmente a inovação implica em mudar algo, em sair do conforto do que lhe é familiar. E isso é difícil para todos. Ninguém gosta do desconhecimento que vem junto com a mudança. Mas, há aqueles que gostam menos ainda. E a inclusão destes desde o início do processo é bastante importante. Quanto mais nos sintamos parte da solução, mais iremos abraçar e aceitar melhor a nova proposta criada em conjunto. O sucesso da implementação de algo novo está diretamente relacionado ao nível de comprometimento das pessoas que a farão acontecer.
Contexto:
A regulação, em qualquer indústria, pode ser um limitador para fazer algo diferente. E na indústria da alimentação, por exemplo, não é diferente. Ao falar sobre focar em necessidades-alvo ao invés de público-alvo, surgiu uma dúvida sobre a influência dos órgãos reguladores na flexibilização de novas embalagens que atenda novas demandas.
Há um conjunto de normas que exigem a inclusão de determinados textos informativos na embalagem dos produtos. Essa determinação acaba por limitar o espaço disponível para a comunicação da própria marca. A partir daí surgiu a dúvida sobre como criar algo novo em um universo cercado de regras rígidas. Como sair do padrão ao se ter certas obrigações a cumprir? Como inovar neste contexto?
Pergunta: Como inovar em um cenário onde a regulação é forte e nos limita em diferentes cenários? Por exemplo, se quisermos criar embalagens menores para atender a necessidade das pessoas que moram sozinhas, como poderíamos comunicar em uma embalagem com pouco espaço disponível? Como comunicar em embalagens menores, para atender a necessidade de porções individuais?
Resposta:
Como comentado antes, para qualquer mudança que se pretende fazer é preciso envolver as pessoas que possibilitarão sua implementação. Determinar o grupo de pessoas para o projeto é fundamental para que ele vire realidade. Áreas diferentes, responsáveis por cada etapa da execução, devem ser envolvidas. E os órgãos reguladores também. É preciso envolvê-los para que possam se dar conta da própria necessidade.
Um dos principais problemas para se fazer qualquer coisa reside em problemas de diálogo, ruídos de comunicação e falta de alinhamento entre as pessoas. É preciso se abrir para conversas francas, que demonstre a motivação correta, a partir de dados que argumentem sua defesa. As regras existem por algum motivo, assim como a revisão delas deve acontecer por razões que se mostrem fortes o suficiente para acreditar. As regras foram criadas a partir de determinado contexto. Se o contexto muda, as regras devem acompanhá-lo. Por isso o alinhamento é uma das etapas principais em um processo de inovação, e devemos abrir o projeto, convidando todos aqueles que detém algum papel na mudança que se pretende fazer.
Contexto:
Dentro de qualquer Indústria há determinados produtos com menores níveis de diferenciação. São os produtos commodity que, basicamente, diferenciam-se por preço.
A questão gira em torno de como inovar dentro desta categoria.
Pergunta: Como a Indústria commodity (arroz, farinha, etc) pode atender às necessidades de um público mais específico, como por exemplo os idosos?
Observação: A pergunta ainda está focada em um grupo específico (idosos), ao invés de na necessidade-alvo: pessoas que não cozinham. Não estou totalmente de acordo que idosos cozinhem menos pelo avanço da idade (minha memória afetiva diz exatamente o contrário, quando penso no cuscuz e na canja da minha avó, hoje com 103 anos).
Respeito como a pergunta foi formulada (acima), mas como defensora do conceito “necessidade-alvo”, proporia um pequeno ajuste na questão:
Como a Indústria commodity (arroz, farinha, etc) pode atender às necessidades das pessoas que não têm o hábito de cozinhar em casa? (novamente, aqui podemos abraçar diferentes públicos, convencionalmente divididos por idade – um executivo de 35 anos, uma universitária de 21 anos, um senhor de 83 anos, por exemplo), e não apenas os idosos.
Resposta:
Antes de responder preciso fazer outra pergunta: Será que um produto não pode ser visto como um serviço? Muitas indústrias estão tendo que transformar seus negócios.
A Indústria automobilística está começando a vender serviços ao comunicar não a venda do carro, mas o seu aluguel com tudo incluído (serviço de renting mensal), e algumas marcas estão desenvolvendo plataformas de compartilhamento de carro (serviço de uso por minuto, sem sua posse).
A “servicificação” é um fenômeno que podemos ver em distintas Indústrias. Até o consumo de água já se “servicificou”, ao entender que as pessoas não querem o galão de água em casa, mas sim o acesso à água filtrada.
Desse entendimento surgiu o serviço de assinatura mensal de um filtro com manutenção incluída. A partir destes exemplos, por que não podemos pensar em um serviço para alimentos commoditizados, mas essenciais no nosso dia a dia? Será que a combinação de diferentes produtos não poderia ser um novo produto? E será que esse novo produto não poderia ser escalável para entregar à domicílio, através de um serviço de assinatura de marmitas? Há uma infinidade de novos serviços surgindo, justamente pelo entendimento que é preciso focar em necessidades-alvo, ao invés de públicos-alvo. E, para criar esses serviços sempre é importante ouvir as dores das pessoas que farão uso dele. Por que não ouvir dos idosos, universitários, executivos que têm demandas similares para criar algo com valor para eles?
Perceba que respondi com outras perguntas. Antes do ponto final, cabe uma explicação interessante: o objetivo de responder com outras perguntas não é sair pela tangente, mas sim o de provocar uma postura questionadora, essencial para inovar. Há ferramentas que aplicamos em projetos baseadas em somente fazer perguntas para entender a origem, a raiz dos problemas. As crianças fazem isso o tempo todo, refletindo o seu alto nível de curiosidade com tudo ao seu redor. Deveríamos manter / resgatar esse olhar curioso no nosso dia a dia, como se víssemos tudo pela primeira vez. E nesse nosso novo exercício diário, talvez devêssemos começar perguntando simplesmente: Por quê?
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*Por Graziela Di Giorgi, CGO e diretora Brasil da SCOPEN.
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