Em meio a uma pandemia não parece ser fácil empreender em nenhum tipo de negócio, quem dirá em um projeto audiovisual, musical, complexo e com uma estética a ser honrada. E como se comporta a música pop em um tempo cheio de lutas, tristezas, reivindicações e busca por esperança desenfreada. Voltaríamos ao espectro musical da década de 2000: letras sexuais, otimistas, de autosuperação, hip-hop agitado, música eletrônica dominando a cena no fim da década com um discurso festeiro e futurista? Não parece ser a realidade. Em Chromatica, novo álbum de Lady Gaga – esse que tomou o cenário musical por tempestade – a dança é uma forma de celebrar a dor e seu aprendizado e de além disso, como aprender a entender que a vida é feita também de momentos baixos, momentos que começam recomeços, ressurreições, revoluções?
Para entender o pop melancólico de Lady Gaga em 2020, a mesma cantora que, em 2009 trouxe um pop ousado com elementos da disco oitentista e uma estética extremamente futurista, temos que voltar ao começo da década passada. Uma época em que nomes pouco cogitados para o topo dos charts revelou a vontade do consumidor por uma arte mais realista e vulnerável.
Do efeito Adele até a influência de Lana Del Rey
Em 2011, regozijávamos de uma era cheia de cores, extremamente eletrônica e pouco aberta à vulnerabilidades. O hit do ano era “Party Rock Anthem”, do grupo LMFAO. Outras músicas surfavam na onda da música eletrônica europeia que tomava o mundo. Exemplos são “In The Dark” de DEV, “Like a G6”, de The Cataracs e “We Found Love”, da Rihanna. Lady Gaga, neste momento apostava uma narrativa parecida com Chromatica: o seu álbum Born This Way (2011) falava sobre gênero, raça, religião e temas polêmicos. O álbum foi um sucesso mas não o suficiente para influenciar o cenário musical do momento, assim como The Fame (2009) e The Fame Monster (2010) o fizeram.
Parecia impossível que uma balada romântica fosse um grande hit. Alguns hits alternativos pareciam chegar quase lá desde 2008, a exemplo da britância Duffy com a ainda assim feliz e vintage “Mercy”. De qualquer forma, de 2010 a 2012, a música mundial se via saturada de pop chiclete e músicas eletrônicas que tomavam as rádios. Um fenômeno imprevisível aparecia, a cantora britânica Adele tomava o mundo para si com uma música devastadoramente pura e honesta. “Rolling In The Deep” foi o maior hit do ano, seguido de “Someone Like You”, o álbum 21 começava uma jornada do que se tornaria no trabalho mais vendido deste século. Estaria o ouvinte pedindo por um respiro e pela oportunidade de mostrar-se imperfeito e vulnerável?
A década de 10
O tempo começa a rolar e, sim, marcas começam a mudar seus comportamentos e tomar um approach mais próximo do consumidor, meios de entretenimento precisam descer de seu pedestal e entender o poder da internet. E em meio ao frenesi de Adele, surge a americana Lana Del Rey, com uma pegada totalmente diferente da britânica reservada, a cantora surge com um álbum que mescla hip-hop ao jazz e orquestras dos anos 50 e 60. Podemos dizer que em um primeiro momento, a cantora não foi tão bem recebida. Seu visual glamuroso e que parecia ter se teletransportado de um filme sessentista geraram dúvidas na imprensa e rumores ingratos.
Mesmo assim, seu vídeo filmado em um quarto de hotel, “Video Games” foi um dos maiores hits do ano em todo o planeta, ali começava a história de uma estética e sonoridade que influenciaria a todo o mundo da música. O álbum de estreia de Lana, o “Born To Die” é recordista em permanência nos charts, há quase uma década, ele figura na maior parada de discos do mundo a Billboard 200.
Lana Del Rey continua seu trabalho único e nunca antes visto pela geração Y e Z. E logo não demora para que a força das duas maiores cantoras do momento comece a influenciar a chegada de um pop mais triste, melancólico e cheio de referências ao lado obscuro da vida. Na Europa, o duo Hurts entoava seu hit “Wonderful Life”, nos Estados Unidos, artistas como Taylor Swift, Katy Perry, Beyoncé e Rihanna começavam a seguir a estética de Del Rey. a banda “Fun.” colocava We Are Young no topo dos charts, Bruno Mars avançava com sua também notável melancolia e The Weeknd surgia com seu hip-hop/pop extremamente dark.
Um mundo onde Billie Eilish é a maior estrela pop
O resto é história e, podemos resumir o destino em dois nomes: Lorde e Billie Eilish. Os dois maiores nomes adolescentes do cenário, trazem a influência óbvia de suas antecessoras e firmam de vez o que podemos chamar de a “vulnerabilização da música pop”; e caso ainda duvide da força do pop honesto e vulnerável, podemos recorrer a recentes artigos da crítica especializada que afirmam exatamente o que aqui dizemos: o jovem ouvinte não se vê mais em uma busca por perfeição e, sim, por realidade.
Voltando ao alvo de nossa análise, durante a década supracitada, Lady Gaga experimentava com novos gêneros e reinvenções: em 2015 fez com que um álbum jazz em parceria com o veterano Tony Benett se tornasse número 1 em todo o mundo. Joanne (2016), uma ode country pop começa a trazer à tona o gênero que se mostrava em queda e em 2019, “A Star Is Born” a consagra como uma lenda. A trilha sonora do filme homônimo a rendeu Grammy, Oscar e todos os maiores prêmios da indústria. Além de ser seu quinto álbum seguido a alcançar o primeiro lugar das paradas.
Neste momento, todos pensavam que a cantora havia desistido da missão de evidenciar a individualidade humana como começou em “Born This Way” (2011) e “ARTPOP” (2013). Para o mundo, a impressão era de que uma das maiores estrelas de nossa geração se encontrava confortável com uma imagem mais conservadora e fixada na parte mais orgânica da música.
Chromatica é um pedido simultâneo de redenção
E essa expectativa jamais deveria ser alimentada, já que mesmo com um trabalho musical mais cru, Lady Gaga entregava atuações em séries de terror, lança uma marca de maquiagem que explora o lado artístico deste mercado e investe pesado na gravação de um álbum eletrônico com BloodPop ao mesmo tempo em que sobe aos palcos de Las Vegas com uma residência musical cheia de referências à cultura asiática e ao mundo retrofuturistico do Cyper-punk.
O ponto é que mais uma vez, algo inesperado acontece e muda todo o rumo de uma indústria. A música se vê na era do trap, pop-rap e outros estilos oriundos. Do nada, surge Lady Gaga com um álbum de eletropop industrial, recheado de letras sobre depressão, redenção e críticas ao que há de mais mesquinho na cultura digital: a conspiração, destruição de reputações e cancelamentos. Chromatica traz um novo mundo. Assim como promete o manifesto do álbum que segundo Lady Gaga retrata um lugar “onde nenhuma coisa é maior ou melhor que a outra”.
A dança durante o caos
Em meio ao cenário pandêmico, este álbum bate recordes de vendas e streamings: É o trabalho musical com melhor estreia desde “Thank U, Next” (2019), de Ariana Grande – que por sinal também explora o lado mais sombrio do pop. E é outra prova de que fórmulas e estereotipagens, sejam elas quais forem, não funcionam mais. Quem imaginaria em ouvir um disco com faixas que contam com o grupo k-pop BLACKPINK e a lenda da música pop Elton John? E, mesmo assim, esse trabalho que pode soar louco antes do primeiro play, entrega uma narrativa coesa e que retrata seu mundo atual.
Ao mesmo tempo, Lady Gaga foi pioneira em entender o cenário atual. Em parceria com a UNICEF, organizou o maior festival de música online do mundo: o Together At Home. Transmitido em todas as maiores emissoras americanas e na internet, o festival uniu empresas concorrentes em troca do propósito de trazer otimismo para a época mais difícil dos últimos anos.
Assim como “Norman Fucking! Rockwell”, útlimo álbum da contemporânea Lana Del Rey, a última jogada de Gaga parece ser uma observação fiel aos tempos atuais com seu toque de surrealismo. O escapismo está presente: vamos para outro mundo, Chromatica, uma terra futurista, semi-apocalíptica, onde as individualidades brilham e se mostram mais do que nunca necessárias. Ufa, parece uma grande anedota da geração Z, mas na verdade reflete o que todos queremos agora: transcender.