Amy Webb é praticamente uma instituição no SXSW. Anualmente, a futurista, fundadora e CEO do Future Today Institute (FTI), faz uma apresentação de grande repercussão no festival que acontece em Austin, no Texas.
Amy é pioneira em uma metodologia de previsão baseada em dados, utilizada em organizações em todo o mundo. Ela transformou a FTI em uma das empresas de crescimento mais rápido da América – classificada na lista Inc 5000 por dois anos consecutivos. Amy também colabora com os líderes de Experiência do Cliente que trabalham nas empresas mais admiradas do mundo para detectar disrupções e elaborar planos estratégicos mais consistentes.
Este ano, como de hábito, Amy fez uma apresentação concorridíssima e trouxe os Big Numbers de praxe. O “Tech Trends”, que sua empresa produz anualmente, traz em 2023 666 tendências organizadas em 15 seções distribuídas em 819 páginas. Mais de 1 milhão de downloads serão feitos desse estudo.
E o que Amy Webb nos trouxe esse ano? “Um mundo que se assemelha ao Magic Eye, um tipo de pôster ilusório que fez sucesso nos anos 90. E esse mundo sinaliza Caos, Desordem e Ruído. Amy foi magnética como sempre, arfando no palco, usando de sarcasmo e ironias em momentos-chave para sensibilizar a plateia.
Uma apresentação segura, dinâmica e repleta de insights. Como ela mesmo diz, é uma “futurista quantitativa”, que usa os dados e evidências para saber onde estão os sinais e tendências que requerem modelagem, não para prever e influenciar o futuro, mas para avaliar a incerteza em geral e então organizamos essa base para criar cenários em 3 dimensões, para ajudar empresas a enfrentarem essa realidade em mutação.
Este ano, Amy pediu a todos que se engajem ativamente nos processos de mudança em curso. Em sua opinião, devemos enxergar as convergências entre tendências diversas e como elas vão realmente remodelar a economia, o mercado e a sociedade. Nesse processo, ela apresentou “2 clusters de tendências”, abrangendo 35 das 666 tendências mapeadas no Tech Trends: O fim de Internet como a conhecemos e A computação Assistida.
No centro delas, o poder das IAs generativas e suas implicações. Você pode achar vastas descrições sobre a apresentação na internet. Mas não vai encontrar o que quero abordar aqui: Amy Webb muito, mas muito provavelmente errou feio em suas análises. Sua visão é catastrofista, dramática e quase apocalíptica. Isso porque Amy, como tantos futuristas, e como consultores, economistas e a mídia em geral, sabem que o apelo ao dramático atua nos nossos sistemas límbicos e nos faz temer o futuro. Atuar em nosso medo é sempre um mecanismo muito poderoso para atrair atenção e ganhar clientes.
Ser catastrofista vai de encontro às nossas crenças e pressupostos, preenche uma lacuna na nossa mente tão repleta de histórias apocalípticas sobre a dominação da tecnologia
Amy Webb e tendências inconsistentes
Claro, a mesma Amy Webb que nos disse que as Big Techs ficarão ainda maiores é quem atende Google (Big Tech), Salesforce (plataforma dominante de CRM), Accenture, PwC, Dow Jones, AT&T, Cisco, H&M, Mastercard e UBS… Nada, realmente nada contra. É reconfortante saber que grandes empresas contratam os serviços de futuristas. E sim, Amy Webb tem um trabalho notavelmente brilhante ao longo dos anos, mas a sua análise sobre Inteligências Artificiais carece de consistência. Vejamos por quê.
Para ela, as IAs generativas irão se desenvolver muito mais rapidamente do que imaginamos, pois isso está no centro do incremento de poder computacional das Big Techs. Se hoje, uma consulta ao Chat GPT custa US$ 2,00 ou 7 vezes o custo de uma busca no Google, quanto mais dados essa IA tiver, quanto mais dados coletar, menor será esse custo.
A capacidade de processamento aumenta em velocidade e reduz em custo quanto mais dados forem acumulados. E, com isso, as IAs estarão no centro de uma internet que nos persegue. Não seremos nós a buscar coisas na internet, será ela a nos buscar agressivamente, a nos envolver e estar presente em nossa vida tão naturalmente como as paredes ou os vidros ou a eletricidade.
Pois é, Amy. Essa é uma realidade que faz sentido para, vamos lá, 15% da população do mundo? Este é o problema central da análise e dos cenários propostos pela futurista: eles se baseiam somente em uma visão de um país de renda alta, desconsiderando que 75% da população mundial vive em países de renda média, com problemas, organização social e de mercado e comportamento digital típicos de países de renda média.
Ao longo da história, os ciclos de inovação não trouxeram uma destruição apocalíptica de empregos. Fraudes financeiras e a leniência de governos com o sistema financeiro é que destruíram empregos
Considerar que todo o mundo vivera a “destruição criativa” das Inteligências Artificiais, afetando os empregos de profissionais de marketing, publicidade, advogados e jornalistas, entre outras profissões é simplesmente ignorar que o mundo ainda é feito predominantemente de operadores de metrô, operários de construção civil, parteiras, enfermeiras, lixeiros, varredores, trabalhadores de comércio, atendentes de contact center, cozinheiros, garçons, seguranças, policiais, agricultores, desenhistas, , diaristas, frentistas, lavadores de automóveis, professores e por aí vai. Ainda mais em países como o Brasil.
Ao longo da história, os ciclos de inovação não trouxeram uma destruição apocalíptica de empregos. Fraudes financeiras e a leniência de governos com o sistema financeiro é que destruíram empregos.
Não foram a eletricidade, a linha de montagem, o vidro, a estrada de ferro e o automóvel que destruíram empregos no século XX: foi a especulação sem lastro da Bolsa de Nova York em 1929. Este ciclo inovador ajudou a gerar muito mais empregos, diversificou a capacidade produtiva e incentivou a criação de novas atividades relacionadas às inovações. Assim foi com a informática e sua crise financeira contemporânea, em 1987 e com a internet com as crises de 2000 e depois, de 2008. É fácil ver, se o progresso e as ondas tecnológicas destroem empregos, por que não registramos taxas absurdas de desemprego? Por que mesmo com a população mundial em linha crescente desde o século XVIII, o número de empregos só cresceu? Por que seria diferente com a ascensão das IAs?
Como é bom ser catastrofista
O fato é que ser catastrofista vai de encontro às nossas crenças e pressupostos, preenche uma lacuna na nossa mente tão repleta de histórias apocalípticas sobre a dominação da tecnologia. Sabemos que boa notícia não dá IBOPE nem audiência. Qual seria a graça de dizer que “Inteligências Artificiais devem criar novos empregos mais confortáveis e reduzir a carga de trabalho das pessoas em 10 anos”?
A CEO do FTI também destacou que estaremos vendo o fim do nosso livre-arbítrio, em um cenário mais “pessimista” … Bom, uma pessoa comum, toma em média 35 mil pequenas decisões todos os dias. Será que as IAs darão conta de todas elas para 7 bilhões de pessoas?
Do achocolatado em oferta na padaria ao atalho na floresta, da quantidade de tempo que iremos secar as mãos num banheiro público até fechar os olhos quando estamos diante do sol forte? E isso considerando, novamente, todas as diferenças entre populações e expectativas variadas em países e culturas diversas? Todos entregariam sua autonomia afetiva, emocional, profissional, social, pessoal para um conjunto de algoritmos? Não me parece crível, pelo simples fato de que nós iremos terceirizar decisões que possam trazer algum esforço ou algum consumo de glicogênio, coisas do Sistema 2, aquele que pondera e pesa variáveis antes de comandar uma decisão.
Claro, terceirizar um caminho para um aplicativo de rotas não implica em abrir mão de definir a velocidade com que se roda e a distância que mantemos do carro da frente. Mas alguém dirá que os carros serão autônomos! E eu direi: no Brasil, onde uma empresa de combustível fóssil, a Petrobrás, estatal e idolatrada por um sistema político viciado em centros de poder, representa 5% do PIB, a chance de migrarmos para carros completamente autônomos, elétricos e conectados é próxima de zero em um horizonte de 30 anos, pelo menos. E pensar em carros conectados no restante da América Latina, na África e no Leste Europeu parece uma maluquice e é.
IAs terão poder e influência em camadas de nível de renda e, talvez, maturidade digital mais acentuadas, mas não lograrão ganhar a dimensão que os futuristas de mercados maduros projetam
IAs não terão o poder que se espera
A evolução humana é assimétrica, desigual e desproporcional. As IAs terão poder e influência em camadas de nível de renda e, talvez, maturidade digital mais acentuadas, mas não lograrão ganhar a dimensão que os futuristas de mercados maduros projetam. Ela não será universal para toda e qualquer dimensão da atividade humana.
A “computação assistida” irá ceifar empregos baseados em tarefas que a maior parte dos humanos já não quer executar, mas o espaço e o território de informação ocupado pela economia criativa será incorporado e enriquecido pela adoção de IAs. Teremos novas profissões e carreiras e, claro, teremos os perdedores, e é terrível que tenhamos. Eles serão vítimas de sistemas políticos e econômicos deficientes ou que não consigam responder de modo mais qualificado aos desdobramentos de uma era onde o digital ganha espaço, mas não diminui o essencialmente humano. Iremos continuar a nos apaixonar. Ver a aleatoriedade mudar nossa vida repentinamente.
Finalmente, Amy Webb, por mais que admire – e admiro e aprendo com seu trabalho – 666 tendências identificadas em um ano é um número absurdo, claramente estressante, excessivamente vasto para gerar qualquer reflexão mais crítica e mesmo para verificar a validade delas. Talvez tenhamos de submeter o Tech Trends ao Chat GPT para verificar sua conformidade.
Aliás, por que não? O futurismo como disciplina tende a ganhar combinando os talentos humanos e de IA para gerar Metatrends e Megatrends que realmente mostrem alcance e impacto por períodos mais longos. Enquanto isso, fiquemos mais tranquilos, Inteligências Artificiais são mais um desafio pelo qual a humanidade irá passar e, com certeza, ela estará melhor daqui a alguns anos do que está hoje, à parte nossos erros, vieses e falhas de julgamento.
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