A saúde privada é um tema complexo. Além de envolver vidas humanas e diversas, com direitos e premissas previstas na Constituição Federal, possui também uma dimensão da relação de consumo do cliente com as operadoras de saúde. Luiz Orsatti Filho, Diretor Executivo do Procon SP, aponta que mais do que uma relação contratual, trata-se de uma dinâmica coexistencial.
O advogado e executivo mediou o painel “A saúde nas alturas: precisamos repensar a saúde privada no Brasil”, no evento A Era do Diálogo 2024. A discussão, que reuniu representantes das esferas privada, pública e reguladora, teve como objetivo destacar os desafios e oportunidades para colaboração na construção de uma saúde suplementar mais eficiente e harmoniosa para os consumidores brasileiros.
“Atualmente, são mais de 51 milhões de beneficiários, mais de 20 mil planos ofertados e mais de 700 operadoras atuantes no mercado”, relatou Orsatti Filho. “Além disso, há a questão da judicialização, uma realidade presente e crescente ano a ano, batendo mais de 200 mil processos em 2023. Esse é o cenário”.
Diante de tamanha complexidade, são inúmeros os desafios que tornam a relação de consumo tão complicado quanto. Como destacou Guilherme Azevedo, cofundador da Alice, empresa de planos de saúde para empresas, um dos grandes entraves para maior acesso dos consumidores brasileiros está nos preços dos planos de saúde, uma vez que entre 30% e 40% dos eventos no setor são desperdícios. “Se imaginarmos que entre 30% e 40% desses eventos não acontecessem, teríamos uma redução de preços, o que aumentaria o acesso ao sistema de saúde privado”.
A Alice, que construiu uma jornada do cliente baseada em tecnologia e numa experiência digital, conseguiu, por exemplo, atingir o percentual de 20% de partos de cesárea entre sua base de beneficiários. Como comparação, o Brasil é campeão mundial em cesáreas na saúde privada, com 80% dos partos sendo realizados dessa forma, sendo que a recomendação da Organização Mundial da Saúde é entre 15% e 20%.
“Cesárea é um procedimento cirúrgico, com custos e riscos inerentes”, explica Azevedo. “Segundo estudo da Fiocruz, 70% das mães desejam ter seus filhos por meio de parto normal, mas apenas 20% conseguem. Assim como a cesárea, há uma série de procedimentos que geram desperdícios. Mas para solucionar isso, é preciso mergulhar no modelo, investir e e executar essa complexidade”.
Falha de comunicação
Para além da eficiência de procedimentos e exames, há outro desafio que se destaca na saúde privada: a dificuldade do consumidor em compreender seu plano de saúde. Com diferentes modalidades, especificações e públicos, entender a cobertura pode ser um grande obstáculo para beneficiários utilizarem seus planos de forma eficaz, responsável e que solucione suas demandas de saúde.
“Temos um arcabouço enorme, com quase mil operadores, milhares de produtos, cada um com diferentes contratações, peculiaridades, segmentação, reajustes, questões de carência e muito mais”, explica Alessandro Acayaba de Toledo, presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (ANAB). “Para o consumidor, essa diferenciação é muito difícil. O primeiro passo para esse desafio seria a simplificação de todas essas regras para que o beneficiário possa, inclusive, fazer comparações entre planos”.
Para Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde, ainda aponta que o consumidor brasileiro precisa ter mais entendimento sobre seu plano de saúde justamente para entender como e quais situações deve demandar a cobertura.
“Defendemos a existência da possibilidade do beneficiário olhar para sua necessidade e comparar com sua capacidade”, argumenta. “Pesquisas apontam que, depois da casa própria, aquilo que a população brasileira mais deseja é o acesso à saúde privada. Outra demonstração de interesse está em um estudo da EY, que apontam que o volume de cartões de descontos para exames e consultas atingiu 40 milhões. Algo que não tem regulamentação, não é uma garantia e não representa um acesso à saúde”.
Regulamentação complexa
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tem entre seus objetivos regular o setor de saúde privada, garantir a defesa do consumidor e ainda priorizar a sustentabilidade do setor. Para Carolina Gouveia, gerente geral de operações fiscalizatórias da agência, há 24 anos, quando a instituição foi criada, as operadoras operavam mais como uma mediadora financeira do setor. Já hoje, o discurso está mais propenso a uma atuação de gestão da saúde.
“Numa relação contratual, as operadoras buscam maior remuneração, enquanto os consumidores buscam menores preços e procedimentos”, explica Gouveia. “É óbvio que a relação entre consumidores e operadoras não é uma relação de parceria, mas o ideal é que fosse. Dados da ANS não têm demonstrado isso, infelizmente. Só em abril desse ano, registramos 35 mil reclamações”.
A judicialização dos casos de queixas de consumidores com a saúde privada é uma dessas evidências que aponta para uma relação desarmoniosa. Para Alessandro Acayaba de Toledo, além da complexidade do tema inclusive para magistrados, a judicialização gera novos acúmulos de despesas para as operadoras, o que volta para o consumidor na forma dos reajustes.
“A ANS tem sido um braço importante para a renovação da NIP (Notificação de Intermediação Preliminar), que acaba resolvendo 90% das demandas que chegam por lá”, conta Toledo. “Muitas vezes, o interesse não está sendo direcionado, o que não é uma diretriz da operadora”.
Por outro lado, Vera Valente ressalta que a saúde suplementar no Brasil é altamente regulada, e que há um grande trabalho em rever algumas legislações. “O envelhecimento é um desafio mundial e em 20 anos, o Brasil dobrou sua população de idosos – e vamos dobrar de novo até 2050. É preciso haver uma escolha com base na ciência. A ANS tem sido heroica, mas essas mudanças trazem um impacto enorme”.
Tecnologia a serviço da saúde
Para Guilherme Azevedo, a saúde foi muito pouco penetrada pela tecnologia. Diferentemente de outros setores, como o bancário e o de alimentação, ainda não alcançamos o potencial tecnológico para transformar a saúde privada. “A saúde é simplesmente mais complexa e demorou mais, mas é inevitável que a tecnologia irá penetrar o setor”, explica. “A transformação da experiência, a forma como dados irão fluir, a ideia do prontuário universal, tudo isso vai acontecer. A tecnologia irá mudar radicalmente o nosso consumo e uso de serviços”.
Para ilustrar essa visão, Azevedo retoma o que aconteceu com o setor bancário a partir da chegada do Nubank. Hoje, mesmo grandes bancos tradicionais não possuem mais anuidade em grande parte de seus produtos de cartão de crédito, além de uma jornada digital mais amigável e empática. “Não podemos subestimar a potência de uma tecnologia bem implantada”.